domingo, janeiro 27, 2013

Ensaios II


Desviou o olhar num gesto mole e fixou o linha do horizonte. O sol punha-se num mar de vermelhos."O dia será quente amanhã." pensou, enquanto tentava por momentos  fugir da sua situação.
Continuava sentada naquela cadeira familiar, na mesa onde tomara tantos cafés em tardes de sol, em muitos daqueles domingos em que saiam para passear. 
Lembrava esses dias. Da brisa morna da primavera em tardes de Março, de como se esquecia de que o dia eventualmente iria arrefecer e precisava sempre do seu regaço até chegar a casa. 
As suas mesas de café, os jornais, as revistas tudo espalhado e aquela linha de horizonte. Enorme, a perder de vista, como a perder de vista eram as suas emoções.
Agora, naquele estranho momento que partilhavam tudo isso parecia demasiado longe.
Ouvia apenas um estranho eco distante, por entre explicações e conversas mal resolvidas.
Como se tivessem varrido o chão todo para debaixo do tapete, e agora o tapete desaparecera. Tudo continuava ali.
Atenuado pelo tempo, meio esquecido mas latente, como pequenas brasas que ficam perdidas no meio da cinza, mortas mas capaz de ressuscitar com um sopro na manhã seguinte.

«»

Reparou naquele gesto tão típico nela. O ausentar-se por momentos, como se tudo o resto perdesse de repente a importância e só ela estivesse ali. O olhar fixo num ponto distante, tinha agora a certeza que ela não o ouvia, nem mesmo quando respondia que sim ou que não, ao acaso jurando que tinha prestado toda a atenção.
Sempre fora parte do seu encanto, ser esse ser impenetrável, com essa imaginação galopante e que se ria sozinha perante um qualquer acontecimento imaginário.
Continua a ter aquela mesma expressão algo infantil, mesmo após tantos anos, conseguia ainda reconhecer a  menina que conheceu.

«»

Perguntava-se constantemente remexendo na memória: "Onde, em que ponto...porquê?" 
Em que momento a vibração do ar deixou de lhe arrepiar a pele, em que ponto as palavras deixaram de fazer sentido e no meio de todas aquelas coisas deixaram de se entender. Como se falassem dialectos diferentes de uma mesma língua.
Houve um momento em que algo quebrou e inevitavelmente, nada voltara a ser igual. 
O tempo parou para eles.
E agora ali, olhando de novo aquele espaço tão seu, agora naquela cadeira sua perdia-se a olhar o horizonte para não olhar para ele. 
Conhecia-lhe cada gesto, sentia-lhe o cheiro. O riso,  forma de cada palavra antes mesmo que a pudesse dizer. E toda aquela intimidade, estilhaçada por uma incógnita era demasiado para o seu ser. 

«»

Sabia que aquela era uma conversa que nenhum deles queria ter. Sabia que podia mesmo ser a conversa impossível. Conhecia-lhe o espírito, não podia ter mudado assim tanto. 
Um doce capaz de gelar em segundos e morrer apática antes de dizer uma palavra que não quisesse dizer.
Um ser blindado. Nunca lhe compreendera esse traço, tão díspar daquilo que era. Daquele ar sonhador.
Reconhecia-lhe, mesmo após tanto tempo de separação, aquela expressão distante. 
Um mundo tão grande, uma incapacidade de partilhar. E ainda assim tinha amado-a durante tanto tempo, perdera a contas ao tempo. Reconhecia-lhe o respirar ansioso, sabia que tinha medo de chorar. E ali, toda aquela intimidade estilhaçada tornou-se demasiado para o seu ser.

«»

O silêncio matava-a por dentro. Não haviam palavras para dizer, o que dizer perante algo irremediavelmente partido? Que debater mais, achar que culpas? E depois de tanto tempo, aquela única pergunta não tinha resposta, que poderiam fazer de si mesmos para além de seguirem vivendo, cada um com os seus pedaços daquilo que tinha sido a sua vida?
Agora que os sonhos se tinham perdido, agora que os melhores anos afinal não estavam mais para vir e não se ouviam mais risos soltos pela casa, misturados com musica, com cheiro de baunilha, nas manhãs frescas de verão quando se debruçava na janela e podiam ainda ser felizes.
Não, não saberiam nunca onde, em que ponto haviam deixado de serem eles mesmos. Como poderiam voltar a ser?

«»

Aquele silêncio. Conhecia-o. Sabia que a conversa findara no vazio das incertezas. Sem respostas. Ela não conseguia ajuda-lo a saber onde deixaram de ser eles mesmos, e sentia que não voltariam a ser.
Desviou então o olhar num gesto mole e fitou o horizonte, o sol desaparecia já, a explosão de vermelhos cessava perante a noite que se instalava engolindo tudo o que se podia ver.
Quando a noite o engoliu, levantou-se então. Ela levantou-se consigo, deram um abraço silencioso e por momentos foram eles mesmos, no aperto daquela intimidade, dos cheiros, dos corações que batem ao mesmo ritmo, de dois corpos que vivem a mesma vida num tempo que congelou.
Teriam ficado ali naquele momento que eliminava todas as perguntas que não tinham respostas, mas crianças  correram atrás de uma bola perdida, um cão ladrou na varanda e o mundo recomeçou a girar e estilhaçou-os de novo.

«» 

Soltou-se daquele abraço num pranto interior. Partiu lentamente por uma rua que não era sua, até que a imagem dele se diluiu engolida pela noite.
Foram iguais a si por momentos, queria ter agarrado esse momento, agarrado em si e nele e não os ter deixado fugir.
Mas gelou. Nas perguntas sem respostas, nos cacos de si que já não se aguentavam mais juntos.
No escuro daquela noite sentiu-se a desaparecer.
Sentiu a certeza que nunca poderiam sarar aquela ferida.






sábado, janeiro 26, 2013

Ensaios I



O Silêncio. Um eco sem cor vibrando pela casa. Todos esses lugares comuns, o pó dos móveis e os papéis abandonados ao acaso.
O cheiro familiar, algo adocicado, misturado com o comer de ontem, perdido na memória do dia.
O escuro da luz neutra, baixa para não ferir os olhos. Tudo no silêncio da casa.
A sua casa, tão sua uns dias, outros completamente indiferente.

Não havia pronunciado uma palavra naquela semana. Foi como se as palavras fugissem de si, se escondessem num qualquer recanto da mente, se recusassem a formar as ideias que cresciam no seu ser.
Quedara-se num canto da casa na penumbra, olhando ao longe um fio fino de paisagem por uma nesga da janela.
E via, no chão de madeira o dia a passar, as horas marcadas por sombras. Dias radiosos de sol pelo brilho do soalho, aquele dia triste de chuva pela triste escuridão da casa.
Pensou que se esquecesse as palavras, se permitisse que elas se esvaíssem de si aqueles sentimentos que a atormentavam desapareceriam também na ausência de significado, na impossibilidade de tradução.
Esperou, inerte. Perdendo um som de cada vez, esquecendo os rabiscos no papel…havia uma semana que não dizia uma palavra.

Quando todas as palavras se perderam por fim, quando não havia mais código nem símbolos, nem formas de se explicar levantou-se por fim.
Aproximou-se da janela, abriu-a. Cheirou o ar e não soube a que cheirava. Nem conseguiu sorrir ao verde das colinas, ao azul do céu.
Não soube como explicar. Perdera as ideias tristes que havia dentro de si…mas sem as palavras perdera também a beleza dos dias.
Sentir nada pareceu-lhe então um horror maior do que sentir algo que ia doer…Não poderia viver em tamanha apatia.

Quedou-se então perante a janela aberta e lembrou-se de um som de cada vez, prenunciando-o ao vento. Esforçou-se pelas noites, contando as estrelas, dando-lhes nomes. Até que uma frase se formou,  depois um conceito, e o coração apertado criou a dor e o desgosto que vivia em si tornou vivo.

E ainda assim, doendo que estava a sua alma, cheirou o ar e cheirava a terra molhada pela geada da manhã, sorriu à beleza do verde das colinas e viu a aurora nascer, o milagre de um novo dia.
Pensou então na sua ingenuidade. 
Pior que sentir tamanho desgosto, é não sentir nada.

quarta-feira, janeiro 23, 2013

A arte de passar pela chuva sem se molhar...




O dilúvio era bíblico, um exagero de dias cinzentos, opressivos e entediantes.

O cheiro a bafío alastrava pelas escadas,  a vida dentro da casa hibernava naquela atmosfera de estufa onde a humidade era descontrolada. A roupa molhada espalhada, o caos doméstico, a vida suspensa esperando por uma trégua.

As janelas fechadas, chorando a indiferença dos dias, engarrafando o ar estagnado, barrando os sons do mundo.

Estava nesse torpor dos dias, sendo indiferente, existindo apenas. Imaginando areias douradas e distantes ou os raios de sol beijando as encostas da serra. Estava nesse tédio revendo a vida, olhando pequenos instantâneos.

"Havia sempre passado pela chuva sem se molhar." Pensou.

Vivendo em mar de águas calmas. Sem exageros, sem extremos, sem extravagâncias.

Sem grandes riscos...sem grandes recompensas.

Nesses instantâneos de coisas, de pequenas vitórias festejadas em descrição, de derrotas vividas no silêncio, encontrou-se nessa apatia geral.


Essa forma estranha de se mover na lentidão, no escuro do quarto, sem tocar nos móveis. Sem fazer cair os bibelôs. Esse passo em silêncio, planeado...essa apatia que impossibilita a extravagância.

Os rasgos de génio ou as tristezas capazes de arruinar a vida.

Essa apatia geral de sentido. Como se na chuva ocupasse só aquele estranho vazio onde nada cai, e o dilúvio chegasse até si em segunda mão, molhando-lhe apenas os pés, quando a terra encharcada se recusa a engolir mais água.

Abatia-se sobre si essa ideia opressiva de resignação perante a vida. Não a sensação de falha, só a poderia sentir se tentasse.

Mas essa sensação de apatia, de tédio de quem não falha porque não tentou.
Não gritara alto, nunca ralhara a ninguém...nunca fugira ou insistira em ficar. Sentia pouco, ou muito...de mansinho...na apatia.

E então o tempo existente na sala pesou sobre si. Tornou-se espesso, o tempo impregnado de água, frio.

O tempo perante si, ecoando pelas paredes num tic-tac apressado, passando ao ritmo a que o sangue lhe corria nas veias.

Aflito. O tempo afligindo-se por fim. Ansiando... "obriga-te, sai do ponto vazio, ocupa espaço...ignora a arte de passar pela chuva sem te molhares...."

domingo, janeiro 20, 2013

2013...

O ano já se instalou, veio de mansinho, ocupou o espaço que é seu.

Reclama o tempo que está a passar.
As datas que se aproximam, os seus significados.
2013.

2013 seria o ano.
Assim será outra coisa qualquer.

Outra coisa indefinida, cinzenta, vazia.

Poderia dar-lhe o significado. Mas há dias em que não nos reconhecemos para além do vazio deixado por esse momento de perda.

2013 seria qualquer coisa especial...assim não será nada.

quarta-feira, janeiro 09, 2013

Au revoir Montreal ...

Dizer adeus, mesmo que seja apenas um até breve nunca é fácil, já devia saber.
Já devia conseguir aceitar.

Eu, que sempre vivi entre casas. Entre famílias. Entre férias e meses de escola. Eu e as escovas de dentes espalhadas pelos distritos, uma vida de malas feitas, de momentos de ausência, de coisas irrecuperáveis, perdidas.

E ainda assim, dizer este adeus foi mais doloroso, o mais sentido, será talvez mais longo até breve dito até aqui.

Sempre adorei a minha mana mais velha. Sempre. E sempre vivemos separadas. E mesmo assim, pude estar sempre lá.

No primeiro dia da escola. Quando entrou para a universidade, quando arranjou o primeiro emprego, quando nasceu o primeiro filho....

Não vou estar quando nascer o segundo, desta vez é longe a distância...dói de pensar nos meses, nos anos de primeiras coisas que não vou ver... Essa perda, de todas as oportunidades, de sorrisos, de pequenas zangas...essas palavras esquisitas e as reconciliações. 

Todas as vezes que rimos até nos doer a barriga, quando choramos sem razão, quando sorrimos de alegria. 

A vida vai fluir, acontecer. Lá longe, entre ecrãs. Cresceremos sendo diferentes.
O meu puto vai crescer ouvindo apenas o meu eco.

Lembrar-se-á que acordava a tia pela manhã com pequenos gritinhos de alegria? Verá fotos um dia. 

Um inverno, naquele que aconteceu a maior tempestade de neve de sempre, a tia veio. Brincou no tapete da sala, cantou bossa nova para o menino dormir, acordou pela manhã com um abraço cheio de energia...

Porra, posso chorar o resto da viagem, posso fazer o avião todo se comover com a minha nostalgia... Estou em perda. 

Merda, só podemos viver uma vida... Só podemos estar num sítio, ser uma vez. Escolher, sabendo da perda, sabendo como poderia ser diferentes tudo o resto, todas as outras opções, as outras vidas que podíamos estar a viver. 

Devíamos esquecer...devíamos ser felizes na ignorância dos nossos dias.
Nunca, sinto...poderei me conformar com tempo.