terça-feira, julho 30, 2013

Barcelona


Para mim havia a Espanha da raia, aquela que eu quase consigo tocar quando abro a porta e cheiro o ar. A Espanha de Badajoz, dos caramelos dos toureiros e das sevilhanas.

Depois visitei Madrid e ai conheci uma Espanha mais cosmopolita, mais cheia de vida e de pessoas pelas ruas. De miúdas demasiado produzidas a passear na Gran Via e de rapazes com camisas bordadas.

A Espanha de parques largos e viçosos onde se se pode correr, as cidades de alamedas largas e ar organizado e muitas, mesmo muitas esplanadas, sítios vividos, pessoas na rua.

Ainda assim a Espanha interior. Onde o ar é rarefeito nas noites quentes de verão, a vida segue ao ritmo das "siestas" e das tapas a seguir onde tudo isso é empurrado com cañas.

Ainda assim, a vida desses sítios foi sempre vista com esse filtro conhecido dos roteiros de turistas, das sugestões do melhor sitio para visitar ou das conversas orientadas por quem já lá havia ido.

Vemos a vida dos sítios através do vidro. O resto do mundo é um aquário.

Visitar Barcelona foi diferente. Porque Barcelona é uma outra Espanha. Porque visitei pelas mãos de quem lá vive. Por momentos eu estive dentro do aquário, e vi o pulsar das ruas, e comprei fruta na esquina, e respirei o ar das noites sufocantes do mediterrânio.

Há um contraste entre o plano das Ramblas e a trabalhosa subida ao Montjüic ou ao Park Güel. As ruas planas e largas cheias de arvoredo e as vistas desafogadas sobre uma cidade que desemboca no mar, numa orla marítima de areal curto, num mar sem marés onde o sol se põe nas nossas costas.

As vistas cheias de pontos de referencia, a Sagrada Família a impor-se perante um mar de casas e de ruas paralelas, numa cidade bem desenhada e organizada. Barcelona.

A cidade da fruta espalhada pelas lojas de rua, muitas. E exóticas e apetitosas em forma de Smooties frescos e garridos.  O mercado La Boqueria, essa overdose de cores e sabores e tão pouco tempo para provar. Quem diria que havia tantas frutas e tão diferentes, todas numa banca fresca numa tarde de verão? La Boqueria, poderia lá ir todos os sábados de manhã só para a cheirar.


E depois essa mistura de tudo, os restaurantes, os brunchs de domingo, o sushi ou o Vietnamita, o vegetariano e o Indiano ás portas de uma praça cheia de tapas e pinchos. As possibilidades. Viver num sitio com possibilidades. Pareceu-me que tudo podia acontecer ali.

A cidade móvel e rápida a pé, de bicicleta, de metro, de autocarro. A praia ali à mão, a praia à distância de meia dúzia de estações de comboio. As possibilidades.

Noites quentes. Quentes de vestido leve e corpo suado pela madrugada fora. Quentes de gente na rua, nas esplanadas e copos de sangria ou gin tónico em copos desproporcionais.

Dias ainda mais quentes, quentes de pessoas de biquini na relvas dos jardins. Muitas garrafas de agua vendidas por marroquinos que vagueiam pelos parques, e as escondem e sacos de plástico opacos, e as vendem por 1€ num mercado paralelo que deve valer uns milhares...

Barcelona é tudo isso e mais.
Para mim foi também um reencontro. Com pessoas que adoro. Com pessoas que fazem parte da minha vida de uma forma constante, são ADN. Por vezes temos simplesmente de nos voltar a conhecer, de nos dar a oportunidade. Somos todas tão diferentes, os anos moldaram-nos, mas o barro continua a ser o mesmo.
Delicioso reencontro. 

P.S. Adoro-vos meninas, não o disse muito ao longo da ultima década. Estou feliz, o universo trouxe-vos de volta.



"Só há um único problema verdadeiramente filosófico, e isso é que fazer com a nossa vida?"


Camus afirmou que o único problema verdadeiramente filosófico seria o suicídio. Perguntou-se a certa altura se devia beber um café ou tirar a própria vida, visto tudo isto ser um absurdo.
O absurdo da existência, o desalinho dos nossos dias, uma deriva que talvez não valesse a pena viver. 

Para mim, a único problema verdadeiramente filosófico é o que fazer com tanta vida.

Como escolher, quem ser, onde viver, o que fazer com o tempo que nos resta quando o relógio impiedoso não para de rodar.

Quando viajamos é-nos aberta uma janela para outros mundos. Nesse espaço de tempo podemos-nos imaginar a caminhar por outras ruas, a comer noutros sítios, a ser outras pessoas vivendo vidas distantes.

Quando voltamos à vida normal sobra-nos essa sensação agridoce, estarei eu a viver a vida certa?
Aquela que eu quero, a mais completa, aquela que aproveita o melhor de mim?

Essa linha temporal única é realmente madrasta, porque nos obriga a uma escolha de circunstancias e nos encaminha para caminhos e de forma involuntária estamos a viver, não a vida que podemos, mas a que nos é possível.

Como queremos viver o tempo que nos resta é então a única pergunta a que temos de responder. Quem queremos ser, onde viver, o que fazer a seguir, que tipo de pessoas somos, com quem queremos estar.

Que vida queremos ter, quando só temos uma hipótese de acertar?

sexta-feira, julho 12, 2013

O treino



O cheiro a pinho pela manhã era familiar. Misturava-se de forma terna com o cheiro que se elevava da terra, evaporado com os primeiros raios de sol que queimavam a camada fresca do orvalho.

O dia estava cinzento, de uma cor outonal em pleno verão, um dia morno beijado por uma brisa fresca que trazia uma certa humidade.

O terreno era plano, uns troços de alcatrão velho entre-cortado pelos estradões poeirentos secos pelos ventos do estio.

Seguia num passo lento, mas confiante. Não tinha nada a provar nesse final de manhã, nem tempos para fazer, nem lugar onde ir. Corria despreocupadamente só porque precisava de acordar, fazer o sangue circular nas veias, sentir-se um pouco viva.

Conhecia bem os caminhos, cada curva, cada árvore. Podia, percorrer aquele espaço de olhos fechados e ainda assim, a cada volta olhava o mundo com um espanto de quem olha para o desconhecido.

Cada casa. A forma estranha como as pessoas vivem os seus espaços, as hortas certinhas e limpas, os quintais caóticos e desordenados. os pequenos mundos de cada um confinados num terreno, aquele terreno que os traduzia.

Ofegava dentro da blusa encharcada, cheia de cheiros. Não pertencia realmente ali. Pensava que estar num sitio onde já se viveu lhe legitimava a presença, mas não, era uma estranha a correr na estrada.

Uma curiosidade, daquelas que obrigam as pessoas a abrandar o passo e a olhar vagarosamente tentado reconhece-la para lá daquelas vestes exóticas.

Murmuravam por vezes "ah é a neta da vizinha, aquela que está para fora", como se estar fora fosse uma condição maliciosa. Distante, algo que dotasse aquela figura a desaparecer no dobrar da esquina duma existência de outra espécie.

Os cães ladravam-lhe por detrás das redes dos quintais, alguns com fúria. Mantinha um ritmo certo, embora lento, o seu corpo ensopado, dores antigas a gritar.

Sentia-se perder em longas ausências. Com a mente a vaguear. Nada acontecia naquele espaço de gente vagarosa, de caminhos de areia, tão próximo do mar mas ainda longe.

Passou  um carro apressado que a obrigou a chegar mais à berma, uma senhora de idade que apitava a cada soleira de porta que via. Viu-a chegar ao fundo da sua rua. Apitou para uma casa perdida no silêncio e inverteu a marcha.

Estugou o passo, que lhes queria? Fez-lhe sinal para a abrandar, e antes que lhe fizesse qualquer pergunta, a senhora disse-lhe pelo vidro aberto, "sou apenas uma vendedora" e partiu sem esperar resposta. Deixou atrás de si um cheiro a peixe passado pelo calor.

"A senhora vende peixe"- pensou. "Num carro simples, com a canastra no banco de trás?"

Caminhava agora a passo lento, tentando regularizar o folego, tentando alcançar a sua casa ao fundo da rua.

A senhora vendia peixe, sem câmara frigorífico, sem bata branca. Essa ideia não a deixava. Vendia peixe nos montes remotos como se se tivesse lembrado naquele mesmo dia dessa forma mágica para sobreviver.

Parou em frente ao seu portão de ferro forjado, abriu-o com um movimento enérgico, enquanto entrava pelo quintal a dentro aquela imagem não a largava, a velha vendedora de cabelo atado num carrapiço ao alto da cabeça, a canastra no banco detrás. 

Os cães agitaram-se puxando as correntes à sua passagem algo ausente. Depois instalou-se um silêncio

"Somos pobres" pensou. "Quando é que isso aconteceu?"





terça-feira, julho 02, 2013

A chorona


Chorava por tudo e por nada. Lágrimas, era algo que a invadia como consequência óbvia de vagas de raiva ou de nervos. Ou de filmes lamechas ou de situações tristes mas de uma beleza rara.

No entanto, nunca conseguia verter uma lágrima quando alguém morria. De forma embaraçante o rio secava dentro de si. Num mar de calma e paz, mas seco. Pleno de nostálgica contemplação, sem crises, nem gritos. Nem lágrimas.

Recebia sempre a notícia dessa forma impessoal, petrificando-se num silêncio embaraçoso. E esse desconforto aparente crescia ao mesmo tempo que as pessoas à sua volta se agitavam, esbracejando, decidindo a quem avisar a seguir.

O seu rosto perdia expressão, tornava-se num deserto. E por mais estranho que parecesse havia uma onda de paz que invadia a sua alma enquanto relembrava rostos e pequenos momentos, as idiossincrasias das pessoas, o pequeno tique do rosto, o cheiro específico que nos avisava que estava a chegar.

E o desconforto alastrava na falta de lágrimas e alarme, na ausência das palavras de pesar, naquelas estranheza de não saber o que fazer com as mãos nem como estar. Contemplando a amargura dos outros em rostos inchados e descaídos, alarmava-a não conseguir chorar. Como se a apatia fosse crime, como se a única maneira social de expressar a revolta dos momentos fosse verter um rio.

Não havia ainda compreendido o definitivo de tudo aquilo. A perda. Essa coisa perpétua e intransponível, morrer. Isso que nos acontecerá a todos e que todos lamentam naquele mar de lugares comuns ditos sem entoação à entrada das salas claras e frias onde se vela o caixão aberto.

Essa perda total de possibilidade. Esse esgotar, esse tornar impossível. A certeza absoluta de que o que não foi dito nem feito jamais terá lugar depois desse evento: a morte. 

Da consciência, do corpo, da alma ou de qualquer outra entidade em que se queira acreditar. A morte em si, em definitivo, tão certa e esperada e no entanto, esse absoluto mistério.

Continuava de mãos desocupadas, seca por dentro, sentada num desses bancos corridos de madeira, desenhados para o desconforto das noites de vigia. Ouvia, os outros, os vivos a falar das vidas que restam, uma ou outra lembrança, às vezes um suspiro.

Choraria um dia talvez. Um dia quebraria. No dia que percebesse a finitude de tudo quem sabe. Talvez no dia em que se confrontasse com o seu próprio fim. Ou talvez chorar não fosse tão importante.

Porque é importante? Se era chorona? Se chorava ao finalizar um romance, se chorar era só isso. Lágrimas, uma expressão biológica.

Ia abandonar-se ao silêncio do deserto, seco, amargo e esperançoso. Olhando uma miragem, agarrando-se a um resquício de imaginação, criando continuidade para aquele fim. Sem se dar ao luxo dessa banalidade, chorar.