domingo, fevereiro 23, 2014

“Her” : o EU e a necessidade de confirmação.


Queremos ser cada vez mais indivíduos livres, únicos, especiais. Queremos tomar decisões e ter as rédeas da nossa vida, gozar de um livre arbítrio que é nosso por direito divino. Queremos ser a melhor versão de nós mesmos, um hino à solidão, uma forma de ode ao egocentrismo, Eu no centro do mundo, do meu e dos outros.

Mas depois descobrimos que só somos especiais, únicos e livres em comunhão com os outros. Na afirmação e no reconhecimento perante quem nos ama, aqueles que amamos. Temos de imperiosamente ser únicos e especiais perante outros, precisamos de confirmação.

E esse é o imenso paradoxo da existência contemporânea. Porque o nosso Eu especial é pouco dado à partilha ou à cedência. Porque o nosso Eu não pode depender de ninguém para ser o melhor que pode ser, a nossa necessidade de aceitação é inversamente grande à nossa capacidade de aceitar.

Mas o EU sozinho definha. Não somos seres sós. Her, de Spike Jonze é um filme que fala disso, do difícil que é ser só e do muito que estamos dispostos a fazer para encontrar algo que nos ocupe o vazio.

Theodore apaixona-se por um sistema operativo, Samantha é um conjunto de zeros e uns, um ser que vive no éter, mas um ser pensante, um ser capaz de aceitar. Theodore falhou na vida, na realidade foi incapaz de ceder o suficiente, foi exigente demais, deu pouco.

Mas a necessidade de partilha e de confirmação é avassaladora, antes aceitar um ser virtual que ninguém. Antes ser amando por um ser intangível do que por ninguém. A nossa necessidade de paixão e amor é insaciável.

Uma vida solitária parece ser coberta por um manto de escuridão.

Pessoa disse que “ enquanto não superarmos a ansia de amor sem limites (…) continuaremos a buscar-nos em outras metades. Para se ser dois, antes é necessário ser um.” E depois disse-nos que se nos é impossível estar sós, aparte dos Homens, somos escravos.

Somos escravos subjugados pela solidão dos nossos dias, pelas paredes fechadas, pelos quartos vazios. Temos medo do silêncio, de nos ouvirmos. Somos escravos e ao mesmo tempo Senhores da nossa escravidão.

“Her” é uma alegoria para esse medo, essa necessidade selvagem. É tocante, é tocante rever-nos numa história destruída, num luto continuado, num mar de melancolia. E depois a luz, qualquer luz, a luz errada, outra luz a seguir.

Crescendo com outros até que não precisamos mais de encontrar outra metade, essas metades despedaçadas. E encontramos simplesmente alguém, inteiro.
Poderemos ai ser inteiros os dois.

***

Pensei para mim há algum tempo, que há pouca coisa na vida que eu faço com os outros que não possa fazer sozinha. Posso sair e passear, posso jantar sozinha, sentar-me numa esplanada, correr, ir à praia, viver sozinha.

Dito assim parece que sou pouco de estar com pessoas, mas não. As minhas pessoas estão por todo o lado, e eu sozinha em qualquer sítio, era uma escravidão.

Quero ser um todo. Ouvir-me, ver-me, perdoar-me, congratular-me, gostar ou não. Ser um todo uno, menos escravo, sem medo da solidão. Aturar-me, vencer o tédio da existência,  poder estar acompanhada de mim. Não porque sou um ser hermita,  mas porque de todas as pessoas que conheço,  é comigo que passo mais tempo...

Aprender a estar só tem sido um desafio dos últimos anos. Uma aprendizagem difícil.
Estar só é muito mais do que o silêncio dos dias ou a falta de companhia.
É fazer escolhas e ser responsável por elas. É superar essa sensação de perda quando as fazemos.

Perdoarmo-nos quando erramos.

É agarrar num livro e sentar na esplanada e beber o que apetecer, e ficar lá sozinha, sem vergonha desse estado, sem negação.

Aceitar o som do silêncio.
Gostar dele.



quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Na “terra” das primeiras coisas…


É um estado líquido, intemporal esse em que vivemos enquanto estamos suspensos entre uma vida velha e o dia a seguir. Que queremos que seja novo, diferente, melhor.

Provoca dores. Essas devem ser mesmo de crescimento, de desprendimento. O mundo era conhecido, e de repente está cheio de primeiras coisas.

De cheiros que não são familiares e de um mar de sensações, medos e esperanças que todas juntas podem ser avassaladoras.

Encontrar uma casa e olhar para quatro paredes vazias e sentir que podemos viver ali não é fácil. Não é barato, não é simples. A realidade mais uma vez  é mais simples imaginada do que vivida. Imaginamos colocar a chave numa porta e abrir um admirável mundo novo de sofás e almofadas, tudo no sítio. O cheiro a verniz e a baunilha e estás em casa.

Mas depois percebes que tens de esperar para ter essa chave, que tens papeis para assinar, luz para ligar...que tens de te preocupar com pratos e chávenas. Que tens de comprar uma cortina para a banheira e que vais passar meses a achar falta. Disto e daquilo,  a vivência será um mar de falta de coisas.

Já montei uma casa… e depois montei outra, a um passo de cada vez. A cortinados desencontrados das almofadas, a cada coisa a vir ao sabor do quotidiano. A ver estantes a vestirem-se de vida, a deixar um rasto espalhado de vivência em peças desenquadradas e papeis esquecidos. Um processo no qual fica sempre um pouco de nós, mesmo que não seja o nosso reflexo, mas apenas o reflexo das nossas possibilidades. Montar casa é criar refúgio de vida. Mas é um processo, cansa-nos até à exaustão.

Deixar a casa que se montou para trás gera um sentimento de perda estranho. Não devemos ser apegados a coisas, mas não são as coisas em si. Não é apego aos cortinados roxos que foram mesmo os que eu queria ou à cor da tinta da parede que eu ousei escolher. Será talvez à excitação que foi escolher a cor, ao trabalho árduo que foi pintar cada metro daquele sítio, à emoção de ver os cortinados pendurados, o jogo final. De tudo o que fui eu ali. De tudo o que já havia sido noutra casa.

De todas as casas da minha vida.

Deve ser Karma. Não ter casa, ter tantas casas, andar tanto entre elas que não sou realmente de nenhuma.

Aos 30 ainda me falta achar O sítio, que é a minha CASA.
Não sei se será aqui... ainda lhe falta a vista de mar.

***
Não respirava o ar da noite neste sitio há mais de 12 anos. Sempre teve um sabor adocicado. O frio das noites da minha adolescência era melhor que o frio dos dias, e eu podia vaguear pelas travessas como um fantasma deslizando, um exercício de perícia.

A terra, era o meu território, um mapa claro, hoje é uma perfeita estranha. Nunca lhe senti saudades, de todas as minhas casas esta será a mais mal amada, de todos os meus anos esses os que pertencem a uma vida que não é minha.

Sou estrangeira na minha terra. E dou por mim a fitar rostos, a achar que os conheço, a lembrar histórias e situações. Vejo rostos que me olham sem determinação. De todos os sítios onde eu poderia vir a estar 12 anos depois, a correr no escuro da noite na ciclovia não era um deles. "Não... aquela não é a Angie, estranho ia jurar..."

Em 12 anos todos os vestígios de mim desapareceram. Dos nomes das pessoas com quem me dava, os sítios onde ia que estão fechados, as ruas requalificadas. Como se não existisse mais prova arqueológica da minha história. Tornou-se numa civilização sem documentos. Sem ruínas, sem nada.


quarta-feira, fevereiro 12, 2014

Sentimento de Possibilidade...

A primeira vez é sempre difícil, não me enganem. Ninguém gosta de ter mãos suadas e de se sentir desadequado. De não conseguir ler expressões em rostos que não conhece, de não saber, não conhecer, não pertencer.
A primeira vez de algo é difícil. Eu gostava de me deitar agora e só acordar para o mês que vem, porque há uma série de primeiras coisas por fazer, o conforto dos dias perde-se.

Sim. a primeira vez também é excitante, porque é novo, porque é desconhecido, mas tal como dois amantes que não sabem bem o que fazer consigo mesmos naquele jogo, a primeira vez é melhor imaginada do que vivida. Venham as segundas vezes, a meia dúzia. Somos bons naquilo que conhecemos...no resto às vezes temos sorte.

Ao longo dos anos a primeira vez conseguiu evoluir do pânico para o simples desconforto. Tantas salas de aula depois, tantas apresentações ao jeito de alcoólicos anónimos, "olá, eu sou a Angie, venho de Portalegre, quero salvar o mundo...", tantas vezes a ouvir uma voz em segundo plano, sempre esganiçada, sempre menos confiante do que era necessário, saío sempre com a sensação de que havia mais para dizer, "Oh porra, como não me lembrei disto!"

30 anos de primeiras vezes depois, acho que a de hoje correu bem.

Não sou um ser muito social, não sou fã de pessoas à primeira vista. Sou desajeitada, tenho pouca noção espacial e nunca sei qual é o comportamento adequado. Esse código de cumprimentos, e beijos e apertos de mão. E os homens que abrem portas para passar, entro primeiro?

Não, não sou muito social. Deixo cair coisas, tropeço nos fios, fico minutos a pensar noutra coisa. Levo tempo a sentir-me confortável com as pessoas, a dizer baboseiras, a rir sem sentido, a ter um olhar directo e franco. Vou sentir-me desadequada meses. 

No entanto as primeiras vezes são boas, são sempre cheias de sentido de possibilidade. 
E hoje, do pouco que fiz ouvi um "muito bom mesmo". 
Vim embora a sentir-me desadequada... mas cheia desse sentido único de possibilidade.
Amanhã, na segunda vez só poderá ser melhor...

domingo, fevereiro 09, 2014

Borboletas na barriga...


Sentou-se à beira do muro e olhou a planície que se estendia a seus pés. Um imenso mar de verdes, casas perdidas e caminhos abandonados.
Respirou. Lembrava-se de toda uma vida que não tinha vivido ali. De como ela tinha sido, essa semente que se formou no seu ser mas não germinou, morreu antes de crescer.
Lembra-se nesta nostalgia do vazio, porque uma coisa que não existiu não ocupa lugar, mas havia um lugar no seu ser que era daquela vida. De todos os sítios onde deveria ter ido, dos dias e dos anos, das vezes que deram as mãos e dos olhares cúmplices.  Sente o ter envelhecido ali, as vezes que foi feliz e os lutos, os dias cheios de sol ou os invernos longos.
Uma vida inteira vivida ali. Uma vida que não existiu.
Sente essa falta… saudades do que ficou por fazer.

***

Às vezes sente-se completamente atropelada pela vida. Com se fosse jogada pela janela do comboio a alta velocidade e planasse durante muito tempo antes de cair, antes de aterrar na realidade. E enquanto é jogada nesse mar de vento e rebola sem reacção, coisas boas acontecem, e passam e são só meras imagens perdidas na euforia dos dias. Às vezes gostava de ser jogada pela janela, mas em câmara lenta para poder filmar, avaliar, saborear a vida sem que se seguisse sempre essa sensação de perda. Há dias que são tão altos, que todos os outros a seguir só podem ser uma enorme ressaca emocional.

***

A perspectiva é boa, é de mudança. A mudança é boa. É aguardada. A mudança mete medo, e dá má digestão e tira-nos o sono de noite.
A mudança mete medo, mesmo quando é tão desejada.
Está com medo, sente que é capaz da mudança, depois duvida, depois desespera, depois acha que não. Depois respira, a mudança é boa, ela é capaz da mudança. Ela desejou-a.
As borboletas na barriga são agridoce. É bom, mas é assustador.

***

O céu resolveu cair em forma de água, numa chuva perene, num vento rígido com um frio cruel.
Os dias são mais fáceis quando faz sol, quando são grandes. A mudança merece dias de sol. A mudança precisa de dias de sol. Mas ninguém lhe disse que ia ser fácil, e sofrendo o mundo deste mal de inverno também a sua mudança sofrerá. De dias frios e cinzentos, de corredores vazios, de caras novas, de sensação de inaptidão, de dificuldade em se relacionar.
Sofrerá de ruas com outros nomes e rostos estranhos por debaixo da chuva, de sapatos molhados, de roupa desadequada para a intempérie e compras e um mundo inteiro por organizar.

***

Depois de muito tempo enregelada pelo vento de norte velando aquela vida não vivida fechou os olhos e deixou-a ir, o vazio a deixar de ter peso ao sair de si.
Não podia salvá-la, nem resgata-la desse outro tempo que já passou.
Basta-lhe a mudança. Imaginar toda uma vida num outro sítio. Viver toda essa vida.

Mudar e viver. 
Ainda que se assuste, e tenha dores de barriga.

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Sempre os dias...


Amanhã é o último dia. Da década, dessa grande ilusão de se ser jovem eternamente, de se poder fugir do tempo, de ainda ter todo o tempo para fugir.

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As datas, deviam ser apenas dias. Mas não são. Enquanto fazem sentido são coisas plenas de alegria, são dias que amanhecem de sorriso aberto, são horas ternas em câmara lenta, são uma sensação morna na pele.
Quando não fazem mais sentido são vazios imensos, sombras que existem e sol nenhum consegue clarear. Hoje era uma data. Hoje foi uma sombra vazia.

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Lembro-me do dia em que fiz 20 anos, do frio de Fevereiro, das coisas que vestia na altura, dos sítios onde ia, da cama onde dormia e das minhas inquietações. Lembro-me que fazer 20 anos foi como acordar numa manha de verão, com cheiro a mar num dia que prometia, num dia desses de grandes vontades em que tudo pode acontecer. Fazer 20 anos, ser tão jovem e viver tão apaixonada, fazer 20 anos era como poder fazer tudo ainda.

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Não sei porque é tão perturbante essa barreira psicológica. Os 30. Nada mudou, nem um risco novo no rosto, nem uma perda de energia. O espelho reflecte da mesma forma um corpo inteiro, numa mente mais complexa, numa vontade renovada de viver. E no entanto, atravessar essa linha invisível é de alguma maneira dilacerante, como ter dores de crescimento, aceitá-las para além do mito. Um dia fazemos 20 e num sopro fazemos 30 e nesse espaço de tempo o que nos aconteceu?

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Amanhã é o último dia. Ou o dia antes do primeiro do resto da minha vida. Ele pode ser triste e melancólico ou feliz e esperançoso. Mas é um último dia. 

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

"Should I..."


Às vezes confronto-me com a ideia de que não faço a mínima ideia do que estou a fazer, nem do que quero fazer, nem de onde é suposto ir a seguir.
Do que é suposto ser ou fazer para além de estar viva. Do que é suposto pensar em dias de chuva, no silêncio da escuridão... O que é suposto fazer ou ser? Não faço a menor ideia...