sexta-feira, março 22, 2024

Anatomia dos 4kgs…



O rascunho deste texto sobrevive nas entranhas do blogue desde o verão quente de 2014, e voltei a pegar nele porque me tenho questionado sobre o que aconteceu a todos aqueles rostos esquálidos que vi nos corredores do Santa Maria, quando eu própria lá andava em desequilíbrio.

O que fizeram esses desequilíbrios de nós? Quem teríamos sido sem a dismorfia, sem a ausência de autoestima enquanto construíamos adolescentes e nos preparávamos para ser mulheres inteiras?

Quem somos hoje, duas décadas depois? Pessoas equilibradas ou como antigos dependentes a um evento de perder a noção espacial e todo e qualquer reflexo passar a ser um casa de espelhos destorcidos capaz de nos enlouquecer?

Há uma década, a minha pele parecia-me apertada tal como me parece agora.

Na altura não tinha balança em casa e pesei-me no ginásio, tinha mais 4kgs do que o meu corpo pós-adolescente usou durante os meus 20’s.  A ideia tornou-se uma obsessão. A obsessão com os 4kgs. Eu sentia-me mais pesada, mas era uma abstração, agora que era um número, não parou de me perseguir, como dois sacos de arroz presos a cada pé.

Passei a adolescência entre psicólogo e psiquiatra, entre o prozac e a anemia. Entre ciclos de jejum e festins alimentares. Anos a habitar um corpo que eu resolvi matar à fome porque a imagem que eu tinha de mim era mais frágil, mais quebradiça.

Porque eu ocupava demasiado espaço, nunca fui delicada, sempre tive ombros largos e após uma infância muito próxima da hiper actividade evoluí para uma adolescência melancólica e apática com pouca energia para viver.

Há 10 anos, como agora, uma parte racional do meu ser não queria saber disso, observava o mundo de um outro angulo. A menina de 15 anos, essa estava e está assustada, bastam 4kgs mais persistente para que essa construção, essa persona confiante e equilibrada se sinta ameaçada. Que em alguns momentos na vida eu sinta que posso mesmo perder o controlo dos dias e estar novamente só no escuro a desejar intensamente ter um ar pálido, ossos salientes...

Todos esses sentimentos num mundo completamente obcecado com o comer. Com as televisões pejadas de Master chefs, os restaurantes sorrindo com caras Gourmet, o mundo dos vinhos a convidar à constante degustação eu aterrorizada com o simples facto de que tenho de comer para viver.


Agora como nessa altura não estou gorda. Continuo apenas pesada para aquilo que eu acho que deveria ser. Esse é um conceito que sempre terei distorcido. Tenho 40 anos. Agora, como quando tinha 15 não acho que seja influenciada pelos padrões de moda vigentes, não sigo influencers nem me quero parecer com nenhuma estrela. Mas "Nothing Tastes As Good As Skinny Feels"o mantra dos 90´s continua-nos nos ossos.

Aos 40, como aos 15 o controle que eu devia ter do meu peso continua a ser uma metáfora desaforada daquilo que devia ser o meu controlo da vida, num sistema complexo de esforço e recompensa, de ato e consequência.

A anatomia dos 4kgs não se confere numas calças apertadas, nem em cortar nos hidratos de carbono ou correr menos para levantar pesos e estimular o metabolismo. Os 4kgs são uma ferida antiga, uma cicatriz que me lembra que o equilíbrio da nossa mente é tão ténue que às vezes duvido que possa realmente existir.

sexta-feira, março 15, 2024

Viver com os outros...

Primeiro habitamos um corpo, depois uma casa, uma rua, uma vila, uma região, um país e o mundo.
Habitar, não quer dizer existir, nem fazer parte. Podemos viver a vida todo num corpo que ignoramos, numa terra que desconhecemos, viver sem nos envolvermos numa comunidade. Estamos, ocupamos espaço.

Eu preciso de habitar espaços que me reflictam. Um corpo que não se dissocie da minha mente, casas cujas paredes me relaxem perante a visão de coisas familiares, terras que possam matar a sede de estar só ao mesmo tempo que alimentam a fome de multidão.

A terra pequena não faz uma coisa nem outra. Nunca estamos sós numa rede familiar que se ocupa de nós, e nunca estamos emersos numa multidão que não existe. Um paradoxo, aqui onde me devia sentir relaxada e descansada sinto-me mais cansada que nunca.

As casas que são habitadas por várias pessoas nunca caiem no esquecimento dos dias, não há penumbras familiares e os objectos nunca são abandonados à mercê do tempo. A co-vivência em consciência obriga-nos a pensar no espaço dos outros e nunca termos um momento de autêntica redenção. O deixar estar fora da ordem universal, viver com os outros é manter a vida arrumada numa certa disposição.

Não se deixa o jantar para um tempo indefinido, nem se abre uma garrafa para degustar a solidão quando há com quem a partilhar. O rádio luta com a televisão, as janelas trocam-se com portas na luta das correntes de ar que não agradam a todos.  E morrem-nos as brisas frescas na pele trocadas por ares estagnados.

A falta que nos faz o silêncio...








sexta-feira, dezembro 29, 2023

Sobre as ruínas...

Não a quis ver no caixão.

Não vejo ninguém, olho para o lado. De que nos serve contemplar ruínas abandonadas, casas vazias que são os corpos mortos?

Escombros do cataclismo que é morrer.

Esses escombros que serão incinerados ou enterrados e quem sabe, esquecidos num canto da terra para a arqueologia um dia tentar nos perceber.

É o nada. Contemplamos uma caixa de madeira enquanto fitamos os bicos dos sapatos por engraxar tentando não olhar ninguém de frente e escancarar a nossa desadequação ao momento.

Quando não sabemos como chorar nem responder às ladainhas da missa. Ou quando não conhecemos as pessoas que chegam a nós cheios de sentimentos, ou quando engolimos as palavras cheias de segundas intenções das famílias desavindas. Nesses momentos olhamos para os pés e tentamos descobrir o que fazer com as mãos na esperança de encontrar algum tipo de dignidade na postura. Perdemos todos de maneiras diferentes.

E quando tudo isso passou, nem já a ruína existe, foi transformada em cinzas, tudo deixa de ser sobre quem cessou de ser e passa a ser sobre nós, a nossa perda.

Sobre o que teríamos feito diferente, onde lhes falhamos, o que não lhes demos por exaustão ou simples egoísmo ou todas as outras pequenas coisas que nos travessaram a vivência.

Ficamos a contemplar os nossos corpos, casas vivas, orgânicas, algumas ainda em construção, outras em declínio, mas vivas e imaginamos que um dia seremos nós ruínas depositadas numa caixa de madeira para outros contemplarem.

Questionamos quem somos, que vida estamos a viver, é a melhor que poderia ser?

Noutros momentos afundamo-nos no absurdo disso tudo… o que interessa se seremos ruínas um dia?

Depois disso faremos o esforço de perceber qual foi a última coisa que fizemos que foi realmente significativa por quem faleceu, o que lhe dissemos, quem foi para nós, quem fomos para eles e que falta nos fará.

E quem somos se as respostas são ambíguas, e há vazio no lugar de grandes histórias partilhadas, de mentoria. Que sobra se sabemos que não nos teríamos escolhido?  E ainda assim partilhamos uma vida.

Um dia serei ruínas, uma casa vazia pronta a incinerar. Não ficarei sequer para estudo da arqueologia.

Alguém fará disso um momento sobre a sua perda, ou não.

Morrer parece ser um caminho que se faz sozinho.






terça-feira, julho 11, 2023

Paradoxos...

Não sei como, mas a vida transformou-se numa exaustão perpétua, uma deriva em que temos de escolher quem queremos ser a todos os instantes, numa sucessão de paradoxos, que mudam a cada novo estudo e que se tornam verdades absolutas nos vídeos do Youtube, pelo menos, até se fazer refresh e encontrar uma  validação diferente.

Devemos acordar bem cedo, fazer ioga, escrever no diário, ler 10 páginas e ainda meditar, de preferência em jejum, mas o sono é de ouro e não podemos deixar de dormir 8 horas.

Dez minutos aqui, outros dez ali. Levanta-te de meia e meia hora. Exercícios de 7 minutos várias vezes ao dia são mais eficazes que estafantes jornadas e estar sentada demasiado tempo é pior que fumar para a saúde, já estar de pé faz doer as costas.

O cardio não emagrece e o melhor é levantar pesos, ou fazer HIIT ou as duas coisas, mas não deixar de correr porque faz bem ao coração. E claro, temos de encontrar tempo para descansar, que também faz parte do treino e o stress é corrosivo.

Cortar nos hidratos e afastar o glúten, eliminar lacticínios que incham a barriga, não comer produtos processados, à exceção de hambúrgueres vegetais que sangram e ninguém sabe bem como foram feitos, há que proteger o ambiente e manter o nível de proteína.

Comer de 3 em 3 horas, ou talvez seja melhor não comer de todo, fazer jejum. 16 horas, 36 ou 2 dias por semana, é escolher o protocolo e baixar a app.

Um copo de vinho às refeições, mas tinto que tem mais polifenóis. Uma cerveja por dia que faz bem aos ossos, li num estudo, mas talvez seja melhor deixar o álcool de todo que envelhece.

E para enganar os anos que marcam a pele há o gel de limpeza, o sérum, o contorno dos olhos, o creme de dia e o de noite, a máscara semanal, os exercícios faciais para afinar o queixo e diminuir as linhas na testa. Nunca esquecer o protetor solar, fator 50, mas apanhar sol suficiente porque nos faz falta a vitamina D se não queremos acabar deprimidos e com raquitismo.

Ler mais 10 páginas depois do jantar, está informada, dentro da cultura, mas não olhar para ecrãs duas horas antes de ir dormir que a luz azul interfere com a produção de melatonina. Mas há comprimidos para isso, só mais uma dose de vitaminas. Devemos suplementar sempre, ou só quando temos dores e tem dias que parece que comprar vitaminas é só deitar dinheiro fora.

Autoestima é necessário, se não gostarmos de nós quem gostará? Mas a linha é ténue, entre o amor próprio e o narcisismo. Apostar na saúde mental, no equilíbrio emocional, aprender a estar sós sem nos sentirmos solitários.  Mas nunca esquecer o importante que é ter um círculo social, sair, te divertires e viver aventuras.

A vida são dois dias, janta fora, vai de viagem e compra os sapatos, mas faz o PPR, tem um bom seguro de saúde e poupa para a entrada da casa. Sê, em toda a linha um consumidor responsável.

Não deixes pensamentos maus invadirem o jardim da tua mente, mas sê consciente do mundo à tua volta, da guerra, das alterações climáticas, da inflação galopante da pobreza encapotada. Compra o arroz e o leite para o peditório, mas te enroles na caridadezinha.

Entretanto, neste gasto de energia, os dias passam lentos e os anos rápido, é o paradoxo mais brutal da vida.


quarta-feira, novembro 24, 2021

Millennials...


Às vezes avalio a Vida e sinto-a como alguém que chegou tarde à festa. A festa foi linda, ainda a podemos sentir. Molhar os lábios no vinho fresco, pisar a pista de dança e sentir a brisa da noite. A festa foi linda, mas rapidamente se acenderam as luzes e ficaram para trás apenas os despojos. E nós, acordámos no outro dia entorpecidos por uma ressaca de pouca, mas má bebida.  Confusos porque perdemos algo que não chegámos a ter e a festa não se repetirá.
Como as promessas incumpridas, adiadas e depois esquecidas. A vida para a minha geração, é isso. Uma chegada tardia à festa e ainda temos o lixo por despejar.

Lembro-me de se adolescente e imaginar a vida adulta. Iríamos ser pessoas frugrais cujas compras de fim de dia se resumiriam a uma garrafa de vinho e a um queijo e que depois do after work voltaríamos para casa com fatos envoltos em plástico de lavandaria. Iríamos correr o tempo todo entre malas meio feitas, viajar. Ascender.
O depois seria sempre melhor que o agora.
A sorte protege os audazes e todas as merdas que disseram quem nasceu nos anos 80...

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Na hora...

Lembro-me do caminho de terra até ao monte, as ervas pelo carreiro do meio e os campos lavrados. As casas sempre modestas e inacabadas e os rostos das pessoas que já tinham longas vidas.

Lembro do curral, das ovelhas e das vacas. Do leite quente acabado de ordenhar, peganhento e coalhado, gorduroso, impossível para quem cresceu a beber o leite do Treta Pak.

As galinhas que andavam por ali desgarradas, os gatos ramelosos, o milho, as batatas doces, as couves e as melâncias no verão.

O rosto das pessoas cristalizado em memórias, como daguerreótipos, imagens pouco definidas e longínquas.

O cheiro do verão.

Memórias, o lugar das pessoas na nossa vida, na hora da sua morte.
Qual será o nosso lugar nessa hora?

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Os dias...

Os dias estão maiores já se nota. As luzes espalhadas pelo caminho acendem-se ainda de dia como se estivessem mal sincronizadas. Saio e ainda se vê o caminho de terra batida, levo os olhos a esse chão, essa obra inacabada. Ora seco, ora encharcado, transformado num lamaçal. Cada buraco que não o era no dia anterior, a terra pisada, as pegadas.

Minhas ainda? Haverá mais ténis Nike 38,5 por aqui? E os rodados dos carros, dos tratores, as pegadas de animais indefinidos, que fazem todos eles por aqui? Há casas fechadas, terrenos agrícolas, sobreiros sós. As cegonhas, o burro e a horda de cães que se agita em quintais aleatórios ao som do meu passo.

Cheira a madeira no momento da queima, notas fortes como a espinha dorsal de um perfume. Cedro, pinho, terra e silêncio, tudo embrulhado na maldita humidade de um inverno que não se decide a ser frio e chuvoso e de tempestade, escolheu ser limbo.


Sempre pintaram o inferno como um sítio em chamas, não creio. O fim dos tempos será cinzento e húmido. Sem tréguas ou um raio de sol, só nós de roupa encharcada colada ao corpo, ténis sujos de lama a tremelicar de frio. 


segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Trivialidades...

O mundo deve estar louco, acendi a luz e ando a matar melgas em fevereiro. O que me dá nos nervos os zumbidos a cortar o silêncio da madrugada, as melgas e o cão que depois de velho entrou no cio.

Nos cantos das paredes junto ao tecto cresce a olhos vistos uma mancha de humidade, uma mancha inofensiva, mas ofensiva para o meu sentido do mundo. O cinzento das paredes que nunca mais será exatamente aquele que eu escolhi, a mancha penetrando nos meus quadros. 


Nada mais parece estar no lugar. Não chove, apenas vivemos envoltos neste mar de dias cinzentos, peganhentos de saturação de água no ar. 


As laranjas caiem espontâneas para o chão, a roupa não enxuga e entretanto estamos em fevereiro, a pensar trivialidades. Onze meses de trivialidades. Já vi formigas no quintal, como se lida com formigas no inverno? Como se fosse normal?


E o raio da televisão que continua a vomitar tragédia, e nós cansados já não vemos números. Pensamos no que vamos almoçar amanhã, sim, fazer almoço é algo que tem de ser pensado. As compras feitas antes. Por agora já nos devíamos ter habituado a fazer um menu, acabar de vez com essa coisa da espontaneidade.


Estava a remexer nas bainhas da blusa, a puxar fios com as unhas mal limadas que os tempos não me deixam ir arranjar e estava a pensar que já passamos da vida adiada. Adiada parece que vamos partir de onde parámos e continuarmos a ser quem éramos antes dos traumas e dos cabelos brancos do último ano. Não, isto parece-se mais com um assalto, uma vida roubada. E nós de luto, sem saber ainda como a chorar.


quarta-feira, setembro 11, 2019

Um dia de Setembro




Em Portugal, uma criança que tenha nascido NO dia do 9/11 poderá votar nas eleições legislativas de Outubro.
Nesse dia eu tinha 17 anos e procrastinava enfastiada no sofá  à espera do início do ano lectivo. Vimos aquilo na TV em directo e marcou-nos a ferros quentes, a angústia nunca mais nos largou.
Agarrou-nos antes da angústia de ser adulto, antes do aquecimento global passar a ser a crise climática e a angustia do tédio existencial se transformar no vazio de não sabermos o que será o mundo com mais 2ºC.
Os anos que se seguiram e que se continuam a suceder levam-nos para longe do conforto, da segurança da prosperidade.
Ficámos para sempre em alerta. Quebrou-se a confiança no futuro.
São apenas 18 anos. Neles a guerra do Iraque, a Internet, as redes sociais, a crise dos media, o tsunami do Índico, a crise do subprime, mais ataques terroristas. A fome na Venezuela, o êxodo de África afogado no Mediterrâneo, os fogos fatais em Portugal, os glaciares a descongelar e o mar a subir, o Ébola, as árvores na Amazónia a tombar de todas as formas e duas décadas adentro do século XXI, continuamos angustiados.
Perdemos a inocência num dia de Setembro.


terça-feira, agosto 06, 2019

FMM Sines ou a procura dos Mundos


Ir ao FMMSines não é bem ir a uma festival, é ir ao encontro das nossas ansiedades primárias.
É ir a um local questionar o que somos, que vida estamos a viver. É confrontarmo-nos com tantas outras opções. Notar o quanto nos aburguesamos desde os tempos em que queríamos engolir o mundo de uma vez, dança-lo todo numa noite, ser sempre o melhor que achávamos que poderíamos ser,  ainda que sem qualquer mérito ou consideração.

Quando nos sentamos no passeio a gabar caravanas ou a ouvir o babilónico som ambiente, questionamos. Quem são estas pessoas? De onde vêm, que se passou entretanto? Que fixação é esta com cães rafeiros que se assemelham na higiene aos seus próprios donos?

Quem são? Quando decidiram sair da abundância e do conforto para esta vida despida?

E eu? Quando é que decidi ter uma vida convencional, corresponder?

***

O chão do castelo está sempre revestido de ervas frescas, alfazema e hortelã pimenta entrelaçadas no pasto que ao cair da noite, com a chegada da maresia, libertam um odor agradável, campestre que nos faz sentir um pouco mais ligados à terra, como se os nossos pés se prolongassem em raízes profundas e fossemos imovelmente dali.

As muralhas marcam a linha do horizonte e depois disso só um imenso céu, negro e estrelado. Um manto que nos cobre e por baixo dele o palco, as luzes, o barulho das pessoas que balançam nas suas raízes. Pessoas excêntricas, normais, os sós e os seres sociais. Os que visivelmente tiraram a roupa estilizada e se mascararam de Sines e os que no seu melhor fato não sabem onde vieram parar. O castelo pulsa com todos, ainda antes do primeiro acorde, enquanto só as diferentes línguas são música, a cerveja vagueia pelos copos e os fumos brincam de mão em mão. 

Imagino que no inicio, assim que houve consciência o Homem juntou dois sons e criou o ritmo. Rudimentar mas apaziguador, repetitivo e natural como o próprio bater do seu coração.
E depois o sangue a pulsar nas veias, a ansiedade, o medo, a paz e todas as outras nuances da alma humana se começaram a reflectir nesse ritmo e isso é a música.

Em Sines, o primordial encontra-se com o erudito. E isso é musica universal, uma linguagem genética que nos coloca a todos com o sangue a pulsar ao mesmo ritmo. Em paz e em êxtase ao mesmo tempo. Cansados e ainda assim transbordantes de energia, bebados de tudo e experienciando a mais clara das sobriedade. 
A musica a ser comunhão.

Não se vai lá ouvir as modas, nem ser contracultura. Vai-se lá assumir a beleza da diferença. A qualidade do que é bem feito, não importa onde vem nem o quão diferente pode ser de nós, da nossa percepção ou dos parâmetros que nos regem.
Vai-se ao Castelo de Sines viajar. Encontrar Mundos, dentro e fora de nós.
Por isso que voltamos todos os anos. 
Ainda não descobrimos tudo.





quarta-feira, julho 03, 2019

Morreu o Avô.

Morreu o Avô.
O Avô não vive nas nossas memórias da infância. Nunca contou um história, nunca nos ensinou nada para a vida. O Avô não é referência, nem modelo, mas o avô existia.
O Avô vivia à vontade dele, há anos no silêncio dos dias e da sua limitação. 
Diz-se na venda que não havia outro para cavar a terra como ele, o Tigre do Isaías. Chegava ao balcão com duas laranjas no bolso e bebia um litro de tinto. 
Ouço que noutros tempos os carros recorrentes nos caminhos para o Algarve abrandavam o passo a seguir às bombas da Móbil, não fosse ele andar por ali a ziguezaguear encostado à pasteleira ferrugenta.
A bomba já não se chama Móbil, a estrada tem semáforos, há autoestrada....O Tigre já não passa.
O Avô usava um desses chapéus de feltro negro à maltês e tinha os dedos curtos e grossos, como pequenos troncos nodulosos de árvore, retorcidos e exaustos saindo de mãos que nunca faziam festas.
Nos últimos anos sentava-se à esquina da casa a abismar, e fazia-me "espécie". Em que pensaria ele naquela forma de sono acordado... meditava? Revivia memórias? Pensaria tudo aquilo que não podia dizer? Desmontava o mundo?
Quando era criança o Avô trazia melancias no verão, daquelas grandes e riscadas que comíamos sentadas em bancos no quintal com o sumo a escorrer pelos cotovelos para o alguidar no chão. A seguir migávamos as cascas para as galinhas e tomávamos banho com água fria chupada do poço pela motor da rega que hoje teima em não funcionar.
No fim do outono trazia batatas doces que se assavam no lume de chão na casinha mascarrada entre os potes de barro de aquecer água e a lenha incandescente. 
O Avô dizia que tinha bom ouvido, tão bom que ouvia as sementes a germinar debaixo do chão, mas ligava o rádio  bem alto às primeiras horas da madrugada.
Este inverno ensinou-me a cortar lenha num cavalete e danou-se sempre que lhe roubei o trabalho, mesmo que lhe faltasse o equilíbrio e a mim não me faltassem braços.
Dizia que tinha mais dinheiro que terra, mas que importa, não levou nada.
Não levamos nada, nem as memórias. 
Deixamos tudo. 
O banco vazio na esquina da casa, o silêncio nas madrugadas, as laranjeiras por regar e a certeza que não dissemos, não fizemos, não vivemos tudo o que havia para tentar.
O Avô morreu. 
Não passou a ser melhor, nem pior, não é uma referência, não nos ensinou nada para a vida.
Existe com uma caricatura do passado, um lembrança das nossa raízes humildes, do muito que crescemos desde os tempos da terra revolta à enxada. Quando as pessoas só tinha dois nomes próprios, os nossos Avós vão para a terra com lápides resumidas.
Aqui jaz Marino José.
Viveu sempre à sua vontade.






segunda-feira, julho 01, 2019

...

Ontem, sentada num banco de espera de estação do Oriente, bebendo o meu sumo de laranja natural acabado de espremer para uma garrafa de plástico de uso único, observado o rebanho de pessoas indo e vindo. Muitas,  mastigando, bebendo, consumindo, carregando malas, correndo ao desvario ou apenas existindo ali ao ritmo a que os comboios trepidavam nos carris... Ocorreu-me que somos mesmo capazes de estar condenados. A engrenagem não tem travão.
Todo e qualquer esforço noutro sentido é como rolar a pedra de Sísifo.


quarta-feira, junho 05, 2019

Corpo


O corpo, um corpo de mulher.
Líquido. As lágrimas, o suor,
a urina e o sangue, a pele.
O cheiro, a libido, a dor, o prazer
Tocar-se, sofrer, desejar
Corpo que a mente não acompanha
Mente que se expande, a sabedoria
Corpo que encolhe, que mirra.
O medo, a falha, a ansiedade
A marca nova no rosto, a cor mortiça
O cabelo que caí, a estria no peito
O corpo, líquido. A dismorfia.
A fome, a gula, o jejum. A raiva.
A insatisfação, o sono, a insónia
O desconforto, a volúpia, a imaginação
A cólica, o dorido, a impossibilidade, a doença,
a desintegração, a finitude.
Um corpo. O corpo.
De mulher, líquido.
Constante mutação.

quarta-feira, julho 25, 2018

Folhas perdidas - I

Há uns anos as folhas de papel em branco passaram a ser assustadoras. O mundo passou a ser escrito em ecrãs, partilhado freneticamente e à mesma rapidez com que se lembra, tudo se esquece.

Até de nós mesmo nos esquecemos na cadência repentina dos dias, as tarefas, as obrigações, os fretes e pelo meio tudo aquilo que fazemos para nos esquecermos do miserável que é não termos qualquer controle sobre os nossos dias.

Há dias que acordo e só queria uma pequena cabana com porta que abrisse diretamente para o mar. Queria poder andar descalça e semi despida e não ouvir nada, nem ninguém. Poder ficar a sentir a rotação da terra debaixo dos pés nus, a maré em ondas mornas, os sussurros do mundo trazidos pelo vento.

Depois há os outros dias, dias em que nada me chega. Não há simplicidade nem isolamento no brilho do mundo quando somos dragados para o seu interior, para as arenas da urbanidade onde debaixo dos nossos pés calçados nada se sente, porque vivemos a levitar. As luzes, as cores e toda essa torrente de informação que nos atropela e nunca, mas nunca nos deixa tempo para a destilar, o tempo passa nessa espécie de alucinação que não nos deixar pensar só nos permite continuar sem nunca por os pés no chão, somos levados em ombros, nem sabemos para onde estamos a ir.



O sono...


Não sei descansar
não aceito o tempo perdido
esta sede... a alma em ebulição

O meu corpo não tem palavra, só grito
Nunca sofro de cansaço...
só desfaleço de exaustão.

quinta-feira, julho 12, 2018

Dois mil dez oito, ou o voltar a casa



A casa fica num fundo de rua onde o alcatrão acaba. Antigamente o alcatrão nem lá chegava, hoje vivemos com ares de modernidade, um pé no asfalto outro na terra batida ouvindo os pássaros gritando pela manhã enquanto discutem os detalhes das suas vidas.

O aroma do pinhal mistura-se por vezes com o da terra remexida nas manhãs que acordam a cacimbar. De tempos a tempos, os canhões da plantação de mirtilos disparam para afastar animais famintos, nunca antes se haviam ouvido, mas este ano os Javalis desceram da serra e começaram a fuçar pela mata rasa nas madrugadas. 

Ao meio da tarde os velhos sentam-se à esquina da casa numa meditação pouco esclarecida, em silêncio remexendo as bainhas das camisolas e murmurando histórias, questionando a memória, revivendo toda a vida num lugar solitário que parece ser cativo. As velhas perpetuam o manto preto debaixo das batas e o lenço na cabeça a amparar o chapéu de palha, não importa qual for a estação.
 
No fim da tarde ouvem-se os motores da rega, os tratores que voltam e de noite, um cão longínquo pode uivar, de resto o silêncio, as cigarras e o breu do mato. 

Por esta altura o sol deveria se por em chamas por detrás do pinhal, mas 2018 não nos trouxe verão nem melancias, só as melgas e as formigas e os tomates ainda por amadurecer por debaixo da rama.

Quando eu era criança andávamos por aqui de pés descalços na areia, nas tardes quentes do verão fechavam-se os estores porque ninguém poderia aguentar a brisa quente das três da tarde no Estio. 

Quando abríamos a porta, só por curiosidade, a luz forte do dia encandeava-nos os olhos, os pés ardiam na soleira da porta escaldante e o ar rareava nessa massa quente que nos era dada a respirar.

Ansiávamos pelo fim da tarde e pelas guerras de mangueira com a água gelada saída do poço. Lembra-me o cheiro da fruta, da terra molhada depois da rega, das voltas de bicicleta depois do jantar e dos gelados na esplanada da Chaminé onde íamos a pé gastar tempo à noite porque não se conseguia estar em casa.

As décadas que nos separam desses dias são tão longas, mas tão curtas que ao mesmo tempo que conseguimos fechar os olhos e as tocar, nada em nós é mais igual. E embora seja o mesmo sol que bate nos chapéus de feltro preto e sejam os mesmos copos de três servidos nos balcões de mármore manchados e gastos dos tascos, a vida tal como a concebíamos mudou.

A verdade é que agora,  o alcatrão chega-nos à porta de casa.