segunda-feira, agosto 02, 2021

Comporta, Carvalhal.

 


I

Percorro sempre a estrada num estado de hipnose, conduzido no presente e vivendo as tardes de verão a caminho da praia nos tempos em que era apenas uma adolescente. Lembro-me da luz dos dias, do cheiro do calor e dos pinheiros gigantes que ladeavam o caminho e esventravam a estrada antes mesmo de chegar à Muda. A Muda marcava o meio caminho entre casa e a praia e eu dizia sempre num tom jocoso que o meu sonho era morar na Muda. Aquela rua de lado único com casas baixas, um cenário de filme western. Tornava-se fácil imaginar que nada mais havia para lá da fachada do solitário café restaurante “A Taipa” com toldo branco encardido da Delta e a esplanada decadente invariavelmente vazia e com uma Sagres vazia esquecida numa mesa.

A Muda era o sítio onde os sonhos passavam sem parar, com medo de se perderem e nos dias de hoje essa caducidade foi maquilhada de exclusividade e luxo. A Muda continua a ser o meio do caminho, mas em seu redor há uma Adega e vinhas, há um resort de luxo e outros virão, o 7570-337 passou a ser um código postal desejado e eu não posso mais do que agitar-me na banco do carro enquanto me lamento por não me ter mudado para a Muda quando as casas se vendiam ao preço da uva mijona porque ali era um sítio onde ninguém queria parar.

Pareceu-me que todas as crises de meia idade passavam por ali também, saíram de casa cheirando a estofos novos e brilhando como uma pintura metalizada. Traziam os cabelos ao vento, queixo alto exibindo o orgulho do lugar que se ocupa na vida e uma pontazinha de desdém por tudo o resto. É impossível não notar a extravagância do parque automóvel, podemos percorrer os poucos quilómetros que nos separam da costa contanto os Teslas, o BMW, os Porches e os Mercedes desta vida, imaginando que não pagam o imposto aqui e sem conseguir descortinar pelo meio do mato denso onde raio ficam as suas garagens. Talvez camufladas entre pinheiros à beira do arrozal, exibindo fachadas ecológicas em locais de legalidade duvidosa. Imagino-os a sentirem-se enganados após gastarem 2 milhões numa casa de férias e serem comidos por mosquitos na primeira festa de abertura do verão no quintal.

Mas vai daí, a horda de mosquitos do arrozal não morde gente rica, ou quem sabe o dinheiro possa comprar algo melhor que repelentes e redes de pescador para os afastar.

Ao chegar ao Carvalhal senti-me como se o circo tivesse chegado à aldeia para uma temporada, montado a tenda ligado os altifalantes e espalhado cartazes pelos cruzamentos anunciando o número com os tigres e dos leões  com palhaços, impondo a sua presença de forma espalhafatosa.

Este circo instala-se, usa e abandona o local, deixando a rua única vazia para os seus habitantes. Os dos arrozais, os pescadores, os que vendem velharias, a malta da pinha e da cortiça e dos outros todos que não sabemos o que fazem nem do que vivem. Ao pessoal que anda de calções e chanatas o ano inteiro e envelhece precocemente com a pele curtida pelo sol, funde-se nesse novo estado, o do folclore de quem serve e dos que são servidos. Existem ainda ali, mas estão dissolvidos  nas cores berrante do novo circo que se instalou. A terra de rua única torna-se numa Riviera até o circo abalar altura em que o sítio volta a ser feito apenas de vácuos, um lugar onde os sonhos chegam para se desvanecer.

No fim dos anos 90 este circo era um pequeno teatro encenado para as famílias de bem que possuíam a Comporta, um local tragicamente enunciado como bom para “brincar aos pobrezinhos” em revistas do social muitos anos depois, quando as famílias de bem caíram em desgraça enroladas nos escândalos financeiros, os bancos, a crise de 2008 e deixaram de ser tão ostensivamente os donos disto tudo.

Passava-me tudo isto pela cabeça agora. Os anos permitem-nos criar um acervo de memórias, uma mistura de trívia recolhida nas revistas e nos jornais com os eventos da nossa vida e dessa amalgama de ideias cria-se esta visão da realidade, uma série de sensações e opiniões. “Não vemos o mundo como ele é, mas sim como somos”, pensei brevemente em Anis Nin.

Vendo o mundo assim, como serei eu agora e quem seria eu há duas décadas quando gastava o verão entre a aldeia e as areias da praia do Carvalhal.

 

II

Com os passar dos anos vamos deixando para trás versões de nós mesmos. Reconhecemos os nossos próprios traços em fotografias amarelecidas, somos certamente nós naquele momento e espaço, mas não o somos mais. Somos outras pessoas, diferenciadas com outros sonhos outras vidas. Mais ainda quando o fantasma que vagueia por ali é um uma versão de nós adolescente. Uma daquelas adolescentes problemática e inconsequente, dramática e frágil, um ser curioso e escorregadio com uma queda para a transgressão. O meu Doppelgänger imaginário viveu nestes areais verões críticos dessa adolescência, trabalhando no restaurante da praia e vivendo em sótãos de aldeia nos três meses de total liberdade que os pais lhe concediam para ir trabalhar. Naquilo que era suposto ser um tempo edificante, afinal o trabalho dignifica o Homem. Mas a minha adolescente não estava muito interessada na dignificação.

O feeling da rua é o mesmo, a principal que se percorre em marcha lenta caso contrário o carro salta alto nas lombas dissimuladas no alcatrão. Há anos foi construída uma variante à vila, mas nunca me consegui acostumar a usá-la. Gosto de seguir em frente depois da rotunda que foi inventada para essa variante logo a seguir ao muro do campo da bola que se apresenta à nossa esquerda. Eternamente esgatanhado por grafitis medonhos e clubísticos, ladeado por pinheiros mansos que fazem sombra a um pequeno parque de merendas. Logo após a rotunda, à esquerda uma bomba de gasolina inativa, uma cápsula do tempo ao lado do qual jaz um bar há muito fechado.  Segue-se o largo das festas, um quadrado de pó que se engala em agosto para as festas de São Romão e alberga os mercados raquíticos que ali passam mensalmente. Depois está cristalizado o antigo restaurante O Avelino, até há pouco tempo aberto e agora de persianas perpetuamente fechadas. Á direita a Junta de Freguesia, o jardim escola e o edifício da Caixa de Crédito Agrícola para nos lembrar que existe ali uma extensão da civilização.

Abre-se aí a rua ocupada lado a lado. Café e esplanadas com histórias antigas privam agora com lojas Pop Up de decoração, restaurantes com comida vegan e imobiliárias hight end. Nas manhas de verão, o trânsito pacato transforma-se numa hora de ponta, de carros parados em segunda via, de camionetes de fruta ou pão a vender no estacionamento e do povo que as rodeia, pessoas com roupa veraneante só de passagem ou a borboletar pelos escaparates dos jornais na única papelaria da vila. Percorre-se a rua como que superando a prova dos obstáculos para chegar ao fim e mesmo antes de se voltar para as praias encontrar um pátio da antiga escola transformado em estacionamento para duas food trucks, com hambúrgueres gourmet e sushi, um último piscar de olhos a um life style estrangeiro ao sítio.

Aí à esquerda ergueu-se entrando pelo arrozal adentro, a novíssima Quinta da Comporta. O suprassumo do luxo, construído no entorno da vila, mas tão longe de tudo e todos, quase como se fosse uma outra galáxia, uma que o comum mortal não pode pagar.

Á apropriação da arquitetura local juntou-se uns pós de arquitetura moderna, à cal das paredes cores e texturas hippie chic e boho e por meio chamaram-se artistas atuais para deixarem a sua marca no meio do nada, nas paredes e do chão que pavimenta os caminhos entre quartos que ficam para lá dos muros que separam as galáxias.

Na rua, resquícios de barracas de pescadores, umas reconstruídas na sua traça tradicional, outras ainda que habitadas, votadas ao pitoresco das redes e dos objetos perdidos pela entrada, como se as pessoas não tivessem noção do real valor do seu quadrado de chão.

Nada daquilo estava ali. Não quando eu era criança e íamos passar os dias à praia de geleira cheia e bola na mão. Quando ir à praia era uma aventura programada, porque o combustível era pago em notas de 500 escudos e poupado desengatando o carro nas descidas. Nem estava ainda quando na minha adolescência ali passava os verões, fazendo o caminho entre a vila e a praia de bicicleta com o avental do serviço dentro da mala.

A berma da estrada era incerta e agora é ladeada por um resort e uma ciclovia. O arrozal continua à direita verde, húmido perene no vale, casa de cegonhas impertinentes que não se assustam com o movimento.

Ao longo dos anos, voltei muitas vezes ali, pude ver a mutação. Mas nunca, como agora, havia sentido esta nostalgia. Ainda não tinha voltado para ficar, como quem volta ao lugar de partida para refazer as coisas, numa troca de vida que ainda nem começou e já me começa gorada. O local de partida não é mais o mesmo. Já não sei porque voltei, se para recomeçar ou se para acabar de vez com o ciclo.

 

III

Na verdade, a oportunidade de voltar ao Carvalhal surgiu do nada, mas pareceu um sinal qualquer do destino e uma forma fácil de escapismo. Como se voltar para ali fosse uma espécie de truque de magia e eu acordasse ao som das ondas, com menos 20 anos e pudesse rescrever as coisas.

Ainda não sabia bem onde as coisas tinham saído do controle, onde eu tinha perdido o sentido de mim mesma e me vi à beira da insignificância. O tédio da existência infetou-me cedo na vida, e os dias passaram a suceder-se uns aos outros sem grande interesse nem objetivo.

Às vezes penso que a minha geração sofre de síndrome da Grande Festa. Cedo na vida estivemos numa festa épica, onde a música estava tão alta que o sangue nos corria nas veias ao seu ritmo. As luzes e as sombras, os rostos em êxtase, as drogas da moda, o clubbing, as discotecas no auge e as festas de transe no mato. A perspetiva de que a vida a seguiria sempre a melhorar.

Os primeiros da família a tirar um curso superior, os primeiros a entrar num avião e a viajar, a falar línguas. A carta aos 18 com o carro já parado na garagem, as expetativas.

As nossas e as dos outros. E depois veio o Boom do Ano 2000, o atentado do World Trade Center e os que lhe sucederam. Veio a crise do Suprime, o FMI e quando finalmente a ressaca estava a melhorar a Pandemia do Covid19.

Ainda temos a boca seca e a dor de cabeça sensível ao som, a ressaca tem já duas décadas e parece que nada mais nos pode fazer sentir a euforia desses anos. Dos anos em que a luta política eram as propinas e o nosso voto só poderia ser de protesto. O combate social era a liberalização dos costumes, o aborto e a despenalização das drogas.

Os adolescentes dos anos 90 achavam que esses eram os problemas do mundo. A crise climática ainda era o aquecimento global e aprendíamos a reciclar com o macaco Gervásio nos intervalos da novela.

Quem queria saber? Fumava-se nos intervalos das aulas nos pátios da escola e podíamos faltar a um certo de número de aulas sem que os pais fossem avisados. Havia uma displicência nisso tudo, fumar passou a matar muito mais depois dos anos 2000 e atualmente há policias à porta das escolas.

Para nós, a geração rasca, o mundo era um parque de diversões, pouco mais tínhamos com que nos preocupar se não em não cheirar a tabaco ao chegar a casa e ter a certeza de que ninguém nos via entrar em bares onde ninguém nos perguntava a idade quando pedíamos cerveja.

A Grande festa e despois a enorme ressaca que lhe sucedeu.

 

IV

Parei o carro fora do parque pago e caminhei até colocar os pés no passadiço de madeira e depois entrar no vasto areal e encontrar o mar. A água do Atlântico continuava gelada e Serra da Arrábida ainda mais presente na paisagem após os níveis de poluição do ar terem baixado nos meses seguintes à pandemia. Se houve alguma coisa boa que saiu desse período miserável das nossas vidas foi esse e o teletrabalho. Praised be!

Os chapéus de palha da área concessionada são em menor número e estavam mais espaçados do que quando eu era miúda e nas praias havia-se inventado uma pequena barraca pé na areia onde adolescentes se atarefavam a servir sangrias de espumante e caipirinhas pelas espreguiçadeiras.

A tarde estava calma embora ventosa, pensei se fazia assim tanto vento antigamente, se os dias teriam esta luz ou se as pessoas pareciam tão alienadas. Os restaurantes sob as dunas deixaram de ser de tijolo e foram substituídos por versões de madeira que respeitam o ecossistema das dunas e os nadadores salvadores tinham agora um posto avançado de vigília que substituiu a velha casota onde guardavam as boias. Mas no seu conjunto é a mesma praia.  A mesma convivência da parafernália do verão com as artes da pesca, o velho trator de puxar barcos pela areal parado lado a lado com jipes novos em folha com tração às quatro rodas que levam gente a praias pouco acessíveis.

A mesma horda  de mulheres vestidas de linho branco e bronzeados de óleo de cenoura, os mesmo bandos de miúdos pré adolescentes chupando gelados e jogando bola na área das redes e para lá da área concessionada, o mesmo mar de chapéus em corres berrantes cheios de geleiras, toalhas e pessoas em bando retidas entre a vontade de dormir a sesta e a necessidade imperiosa de impedir os miúdos de se lançar ao mar.

Tudo aquilo desaparecia em poucas horas, as pessoas arrumariam a tralha e saíram em debandada antes do sol se por. Sobraria para a hora dourada apenas os casais apaixonados ou o surfista ocasional. O silêncio da noite seria ensurdecedor, cortado pela cadencia das ondas, o zumbir dos mosquitos e um ou outro riso abafado dos que tardariam a sair das esplanadas dos restaurantes depois de um jantar mais bebido e sem lugar para onde ir.

Não há bares. Não há pista de dança, não há rua das lojas pedonal nem multidões. Este ano não houve sequer os arraiais de fim de semana. O caminho que separa a orla da praia e os alojamentos raramente se pode fazer a pé e apesar de a aldeia estar a escassos 3kms, a maior parte das pessoas não se faz ao caminho.

A noite começa nos restaurantes e poderá acabar numa qualquer sala privada ou ser deambulada no pinhal sem destino.

O tédio existencial a apanhar-nos ali, nesse momento, bem me lembro. O Carvalhal não é uma estância balnear em ebulição, não é uma praia da Oura.  A Costa do Alentejana é bem mais subtil.

Despi-me e mergulhei, um mergulho profundo só terminado quando já me faltava o ar e o mecanismo de sobrevivência me trouxe de volta ao de cima para recuperar o folego e o nervo. À minha frente o oceano aberto, nas minhas costas o restaurante de praia, embora vivesse agora entre paredes de madeira estava já em declino, como se o tempo não lhe tivesse sido favorável. Meia dúzia de mesas ocupadas servidas por jovens ineptos, tabuas a precisar de tinta, estação de radio errada, uma cápsula do tempo bem fechada, embalagem nova, produto antigo.

Eu estava ali para mudar varrer essa nostalgia para fora e dar alma à casa.

V

Não sei se a missão me encontrou ou se eu a procurei. Pareceu tudo uma casualidade, uma troca de cartões numa feira de Madrid uns meses antes do confinamento varrer as nossas vidas como um tsunami. Esteban Garcia, empresário proeminente da noite de Ibiza estava à procura de praias mais calmas para abrir um beach club exclusivo, de luxo, uma pequena Ibiza num local pouco explorado. E embora não seja a minha área, o meu conhecimento do local interessou-o. O encontro foi igualmente casual por meio de conhecidos e a troca de cartões uma formalidade da qual me esqueci até que algumas semanas depois me telefonou para falar mais sobre o tema.

As praias, o publico que visita a zona, como funcionam as conceções. Que percebo eu disso pensei, caro Esteban eu percebo apenas de copos, de noite e de bares. No entanto, uma coisa cruzou-se com outra, fomos conversando até ao dia em que se materializou.

Esteban havia encontrado um espaço, comprou-o e achava que eu era a pessoa indicada para ir para o terreno o orientar. O espaço era o meu antigo Estrela do Mar.

Por essa altura os dias bafientos fechada no apartamento na cidade já não se contavam em dias, mas sim em semanas.  Nunca o espaço tinha parecido pequeno até então, quem precisa de quintais e quartos extra vivendo no meio de Lisboa?

A vida corre rápida na rua, nos bares, nas galerias ou nos jardins. As compras são feitas à medida na loja da esquina e os jantares maioritariamente fora. A roupa seca-se na lavandaria, a bicicleta aluga-se na app, o carro é um Uber. A vida é feita em outsoursing, não há o que acumular, nem os trapos das milhentas coleções que saem por estação e depois da rodagem se despeja num qualquer contentor solidário.

Mas o confinamento deu-me essa sensação de claustrofobia, o senso de não caber mais no espaço que habito, de não caber no corpo que é meu.

E como se não bastasse, o meu trabalho foi escasseando até desaparecer deixando-me á merce dos dias. O tédio, o medo e a claustrofobia estavam em ebulição quando o Esteban Garcia chegou com a proposta que à superfície parecia boa e era. Financeiramente falando, profissionalmente desafiante, mas numa outra camada trazia-me de volta para uma vida que eu havia já esquecido. Para as personagens e as situações mal resolvidas, para outro tipo de claustrofobia, uma a céu aberto com cheiro de maresia e quintal de areia.

Ainda assim pareceu-me uma troca razoável enquanto falávamos e eu fixava as tabuas gastas do chão da sala. Qualquer coisa que implicasse sair do meio das ruas vazias e sombrias de betão, ainda mais que o resto do país abria já e nós continuávamos em estado de calamidade. Nós os citadinos de noites longas em obrigação civil de recolhimento, de distanciamento e de lanches antes das 20h00 em vez de ceias tardias pela meia noite.

Pareceu boa ideia um trabalho diferente, outro ritmo. Pareceu boa ideia um projeto com objetivos concretos em vez das variantes do trabalho criativo das letras, parecia boa ideia o distanciamento das tensões das relações que viviam já em desgaste. O tédio dos dias. Não havia realizado até ali o quão vazio tudo era, acho que é o que nos acontece quando finalmente há tempo para pensar, para nos pensarmos. Viver na capital não nos deixa tempo ou simplesmente é mais fácil de fugir da tarefa.

Não há que alimentar depressões quando podemos bem ir ao cinema à segunda, beber um copo afterwork à terça, passar por aquela exposição à quarta, deitar tarde à quinta porque é o melhor dia para concertos em circuitos underground e depois é sexta e sábado e no domingo há brunch tardio envolto numa névoa por entre a qual tentamos montar o mosaico da semana com as amigas entre mimosas e as tostas de abacate.

Há sempre o que fazer, onde ir e com quem estar. As relações são intensas enquanto duram e o final chora-se numa pista de dança enquanto se avalia a possibilidade de encontrar ali nova história, outro rastilho de queima rápida. Acendalhas que nos deixam em chama e que esfriam deixando nada mais para trás do que carvão apagado.

Tudo isso se tornou numa evidencia aberrante durante a pandemia. Tive tanto tempo para pensar-me, ali estava eu nos 30 e muitos. Num estúdio, sem trabalho, sem semelhante e sem sentido, remoendo cicatrizes.

A oferta de Esteban Garcia pareceu a única coisa possível de fazer.

 

VI

 

Sempre me interessou a dinâmica do fim de tarde na praia naquele cosmos de área concessionada. Os salva-vidas vestidos de igual brilhando na juventude da sua pele bronzeada com as jovens adolescentes gravitando por ali, atraídas como as melgas são para a luz. Reparei que agora um deles é mulher, antigamente as miúdas não se candidatavam a tal trabalho, mas isso abre todo um leque de novas interações e a dinâmica é diferente. Agora adolescentes de todas os géneros gravitam á volta dos uniformes.

Os novos apoios de praia de pé na área e serviço aos chapéus trouxe toda uma nova forma de luxo. As sangrias de frutos vermelhos e espumante podem rolar em jarros de plástico pelos chapéus de palha enquanto os seus ocupantes de esponjam pelas espreguiçadeiras mandando o moço por o serviço na conta do número do chapéu.

Ali, no aparente lazer preguiçoso de agosto faz-se, no entanto, um intenso networking entre gente com nomes compridos, os advogados e os CEO´s, as mulheres e os filhos crescendo todos em conjunto para se perpetuarem nos seus papeis.

Mas a dinâmica que mais me fascinou foi sem dúvida os bandos de adolescentes, o futuro da nação. Os gaiatos acabados de entrar no Técnico discutindo entre o jogo de volley, as miúdas invariavelmente perfeitas em biquínis lascivos de marcas sonantes. Os louros palha, os nomes que se recolhessem da capa de jornal, quando os ouvimos chamar entre uma bola perdida.

O exercício de sentar e ouvir. Ouvir sobre a jarda de ontem à noite ou sobre o carro que eu tenho, o ano escolar a seguir, a casa onde se está a ficar. Depois o exercício de empatia, pobres ricos, alienados.

Quando era miúda atraia-me tudo aquilo, qual a adolescente remediada parada à porta de entrada não sonhou que a convidassem a entrar? Quem sabe aquela paixão de verão não se tornasse num amor de Hollywood, quem nunca sonhou encontrar um infante rebelde, rico e domá-lo como a um poltro? Quebrar convenções, menina pobre menino rico, lutar contra tudo.

Enfim, também me havia acontecido, a gata borralheira que ficava a varrer o restaurante depois de fechar e os meninos que esperavam que saíssemos para irmos aqui e ali fechando o círculo à nossa volta, tornando-nos especiais pelo menos até que cedêssemos a algo.

Para eles, caçar a menina pobre também tinha o seu quê de interesse. Lembro de um caso com um tal de Martim. Era um doce de rapaz, só ninguém parecia saber, no entanto o meu eu de dezasseis anos foi dura, demos uns quantos beijos por entre uns passeios de jipe no pinhal, fumamos umas quantas ganzas nos fins de tarde e no fim do agosto fomos às nossas vidas sem nada consumado.

Sem redes sociais, sem emails e na precariedade dos números de telemóvel diluíramo-nos na história um do outro.

Eu continuei a varrer o restaurante ele provavelmente manda em algo mais.

Mas estão ali espelhados os estereótipos, os herdeiros, as linhas genealógicas do passado e do futuro e está ali o porque da total falta de empatia pelos que lhes estão abaixo. A arrogância no tratamento e o sentimento de que tudo lhes é devido.

Quem nasce num meio como aquele, cresce entre iguais não pode nunca desenvolver empatia pelos problemas do mundo.

Por esta altura sorri por dentro agarrei na roupa e sai em direção à esplanada em busca de um copo de vinho branco fresco, credo é tão fácil divagar por tudo aquilo. É um quadro imutável.

Dantes não o compreendia, depois numa fase revoltava-me, agora é simplesmente indiferente.

É um absurdo, como diria Camus, a mim batia-me agora na consciência como batem as ondas ao chegar à praia.

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