Ali estava prostrada na sua cadeira, frente ao seu computador, roendo o mesmo lápis de sempre, ouvindo um avião baixar por cima de si preparando-se para aterrar, vendo o reflexo na janela do mesmo autocarro a passar, mais ou menos à hora de sempre. Dia após dia.
Não lhe apetecia fazer nada, mesmo nada, nem pensar.
Mas havia muita coisa em que pensar, muito caminho à sua frente. Desta vez era a sério, não se tratava de escolher entre esta ou aquela blusa na loja da esquina, nem mesmo de discutir á mesa qual o prato a pedir. Agora era mais a sério, e embora a sua aparente calma não transparecesse, dentro de si existiam muitas dúvidas.
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Há uns anos havia pensado para si que existia um destino. “O destino encarregar-se-á de mim”- Pensou.
Isso ilibava-a de toda e qualquer responsabilidade daquelas escolhas débeis, afinal eram escolhas do destino e não dela.
Os anos foram passando, e dos seus trambolhões sempre foi essa a sensação que lhe transpareceu, não queria para si o livre arbítrio concedido aos Homens, chegar-lhe-ia deixar-se levar, ver o mundo a acontecer. Chegar-lhe-ia que as opções se tomassem por si só.
“Decidir é tão complicado. Tanta responsabilidade num pensamento só. Numa única palavra proferida. Sim. Não.”
E isso agonizava dentro do seu ser, a culpa da escolha, a recusa do fracasso, a responsabilidade de ter dito a palavra-chave que mudou a sua vida e que ajudou a mudar a dos outros.
“Pensamentos infantis” - percebeu mais tarde. O destino não decidia nada por si, e aquilo que acontecia era apenas um sopro comparado ao vendaval que poderia ser a vida, a vida escolhida.
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Estava agora ali confrontada, consigo e com aquilo que queria de si e para si.
Da estabilidade daquela janela cruzada de grades, daquela secretária ampla cheia de papéis, daquela cadeira com braços e almofada, daquilo tudo que o “destino” lhe havia trazido, emergia uma certa conformidade cósmica.
Tudo estava no seu lugar, igualmente no seu lugar há vários anos.
Mas nos últimos meses alguma coisa havia mudado dentro de si. Um certo inconformismo, uma certa certeza de estar a passar ao lado de algo muito importante.
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Sempre fora uma piegas. Chorava no fim dos filmes acabassem bem ao mal, e nunca resistiu em levar consigo qualquer bichinho com ar abandonado que encontrasse pela rua. Sucumbia depois à evidência de que não os poderia reter no seu minúsculo apartamento e era obrigada a deixá-los, lavada em lágrimas, no canil mais próximo.
Apesar desse seu coração mole, sempre fora demasiado distraída e demasiado dentro de si para se aperceber do mundo à sua volta, não daquele mundo trepidante das ruas cheias de gente e de movimento, mas daquele outro mundo agonizante, daquele que gritava, daquele a que toda e qualquer ajuda seria necessária.
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De facto, fazendo uma retrospectiva alguma coisa em si havia sido sempre demasiado frívola. Nunca se tinha realmente preocupado. Mas depois daquela queda estúpida. Depois de tantos meses imobilizada naquela cama olhando unicamente para o tecto.
Depois de se ter sentido a mais frágil, a mais abandonada das mulheres, depois de se aperceber que afinal, e no meio da sua frivolidade estava só, algo havia realmente mudado na sua maneira de sentir o mundo.
Havia coisas a mudar.
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Naquele fim de tarde, igual a tantos outros parecia que nada de importante poderia acontecer. Escritório já meio vazio, dois ou três monitores debitavam luz. Um zunido frágil ao fundo indicava que alguém fazia café.
“Ainda vou demorar, um café vem mesmo a calhar.” – Pensou.
Avançou rapidamente entre a confusão de secretárias daquela sala ampla atravessada por dezenas fios eléctricos, carrinhos de papéis, arquivos e o que de mais se possa imaginar.
Chegou ao fim da sala, pegou no seu café ainda fumegante, trocou algumas palavras banais com o colega e avançou com o seu café quente por entre o labirinto de postos de trabalho.
Havia subido uns degraus nos últimos anos, naquele lugar e por isso o seu posto era lá mais ao fundo, a sua secretária tinha uma “meia-parede” que a separava do mundo e a sorte tinha-a bafejado com uma janela por de trás de si.
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Há já alguns meses que andava a fazer aqueles planos, para a maioria das pessoas estes não passavam de loucura, muitos achavam mesmo que haviam ficado sequelas graves do seu acidente. Os mais próximos nem sequer queriam falar daquela resolução maluca.
Ninguém conseguia compreender aquilo que ela estava a sentir. Ali. Naquele momento enquanto roía o mesmo lápis de sempre. Enquanto consolidava de vez aquela resolução, enquanto, dentro de si, se preparava para na primeira vez na vida ser responsável pelo rumo das coisas.
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Foi uma fracção de segundo, ali ia ela, de caneca de café fumegante, papéis acabados de apanhar na secretaria de mais uma resistente das horas extraordinárias. Um barulho de telefone a tocar lá ao fundo, um passo mais apressado, alguma distracção, e o seu pé se enrolou num dos muitos fios soltos da sua calha, os papeis caíram para o chão, a caneca desfez-se em mil pedaços encharcados em café, e a seus olhos o mundo desvaneceu-se ao embate com a cadeira e a secretária que estavam prostradas ali a seu lado.
Viu ainda rostos no escuro a correrem para si, sentiu uma dor aguda nas costas e entrou num sono profundo.
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Havia investigado muito, procurado muito e tinha tomado uma decisão.
Ia partir.
Ia deixar aquele lugarzinho malfadado, o seu apartamento alugado nos subúrbios.
Ia deixar todas as pessoas que conhecia, os amigos a sério, os outros que só ocupavam lugar, os colegas de trabalho e a pouca família que lhe restava.
Ia deixar a vida de burguesinha para onde o destino a havia conduzido.
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Quando voltou a si estava imobilizada, enfaixada, inutilizada.
Veio um médico, depois outro. Da sua queda que agora conseguia vislumbrar apenas em câmara lenta, como se de um sonho se tratasse, havia resultado uma vértebra partida.
Esta era bastante perigosa e a qualquer momento poderia fazer alguma pressão sob a medula óssea impedindo-a de voltar a andar.
O tratamento era simples, imobilidade total, absoluta durante uns longos meses.
Primeiro apenas o tecto como visão. A rádio como companhia e algum amigo mais benevolente que perdesse uns minutos a seu lado. Com o tempo as visitas forma sendo mais espaçadas, e as suas solidões mais longas.
Nem um livro, nem a televisão e totalmente dependente de outros teve muito tempo para se rever, para sentir aquela estranha sensação de estar morta em vida.
A sua vida era vazia, de objectos, de sensações, de lembranças, enfim, de grandes decisões.
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A viagem já estava marcada e o passaporte feito. Tudo pronto. Sabia exactamente para onde ia, qual a sua missão. A implicação disso na sua vida.
Hoje era apenas o dia em que deixaria a sua carta de demissão sobre a mesa do chefe.
Era apenas a noite em que iria jantar a casa dos pais anunciar a partida e depois beber um café com os amigos de sempre e explicar a decisão.
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Após longos meses de recuperação, de imobilidade e depois de fisioterapia, medicamentos, avanços e retrocessos, de tanto sofrimento e alegrias em si havia mudado tanta coisa.
Não mais se reconhecia no espelho.
A volta á vida normal parecia-lhe um pesadelo, aquelas coisas que eram suas, ela, ela ali espelhada naquela vida que já não lhe pertencia, aquela normalidade que todos queriam que voltasse.
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Já era dia, estava pronta. Mala feita, os recados dados. Revia mentalmente as expressões de incredulidade, os: “Vais-te arrepender” e “isso é uma loucura”. Tudo, desde as expressões de terror às de admiração. Houve de tudo.
Estava pronta para dar o rumo à sua vida. Ia entrar no avião. Ia rumo a Africa, ia ser voluntária, lá no sítio onde das entranhas da terra sai o grito maior, o grito de pedido de ajuda.
Era inquietante.
Mas ia para um sítio cheio de horrores, e no entanto havia uma ligeireza em si.
Não sabia o que a esperava, a não ser alguém com uma cartolina com o seu nome num pequeno aeródromo nos confins da selva.
Era uma incógnita.
Era a sua vida.
Era um sentido, uma missão.
Era uma decisão sua, e não do destino.
Não lhe apetecia fazer nada, mesmo nada, nem pensar.
Mas havia muita coisa em que pensar, muito caminho à sua frente. Desta vez era a sério, não se tratava de escolher entre esta ou aquela blusa na loja da esquina, nem mesmo de discutir á mesa qual o prato a pedir. Agora era mais a sério, e embora a sua aparente calma não transparecesse, dentro de si existiam muitas dúvidas.
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Há uns anos havia pensado para si que existia um destino. “O destino encarregar-se-á de mim”- Pensou.
Isso ilibava-a de toda e qualquer responsabilidade daquelas escolhas débeis, afinal eram escolhas do destino e não dela.
Os anos foram passando, e dos seus trambolhões sempre foi essa a sensação que lhe transpareceu, não queria para si o livre arbítrio concedido aos Homens, chegar-lhe-ia deixar-se levar, ver o mundo a acontecer. Chegar-lhe-ia que as opções se tomassem por si só.
“Decidir é tão complicado. Tanta responsabilidade num pensamento só. Numa única palavra proferida. Sim. Não.”
E isso agonizava dentro do seu ser, a culpa da escolha, a recusa do fracasso, a responsabilidade de ter dito a palavra-chave que mudou a sua vida e que ajudou a mudar a dos outros.
“Pensamentos infantis” - percebeu mais tarde. O destino não decidia nada por si, e aquilo que acontecia era apenas um sopro comparado ao vendaval que poderia ser a vida, a vida escolhida.
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Estava agora ali confrontada, consigo e com aquilo que queria de si e para si.
Da estabilidade daquela janela cruzada de grades, daquela secretária ampla cheia de papéis, daquela cadeira com braços e almofada, daquilo tudo que o “destino” lhe havia trazido, emergia uma certa conformidade cósmica.
Tudo estava no seu lugar, igualmente no seu lugar há vários anos.
Mas nos últimos meses alguma coisa havia mudado dentro de si. Um certo inconformismo, uma certa certeza de estar a passar ao lado de algo muito importante.
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Sempre fora uma piegas. Chorava no fim dos filmes acabassem bem ao mal, e nunca resistiu em levar consigo qualquer bichinho com ar abandonado que encontrasse pela rua. Sucumbia depois à evidência de que não os poderia reter no seu minúsculo apartamento e era obrigada a deixá-los, lavada em lágrimas, no canil mais próximo.
Apesar desse seu coração mole, sempre fora demasiado distraída e demasiado dentro de si para se aperceber do mundo à sua volta, não daquele mundo trepidante das ruas cheias de gente e de movimento, mas daquele outro mundo agonizante, daquele que gritava, daquele a que toda e qualquer ajuda seria necessária.
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De facto, fazendo uma retrospectiva alguma coisa em si havia sido sempre demasiado frívola. Nunca se tinha realmente preocupado. Mas depois daquela queda estúpida. Depois de tantos meses imobilizada naquela cama olhando unicamente para o tecto.
Depois de se ter sentido a mais frágil, a mais abandonada das mulheres, depois de se aperceber que afinal, e no meio da sua frivolidade estava só, algo havia realmente mudado na sua maneira de sentir o mundo.
Havia coisas a mudar.
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Naquele fim de tarde, igual a tantos outros parecia que nada de importante poderia acontecer. Escritório já meio vazio, dois ou três monitores debitavam luz. Um zunido frágil ao fundo indicava que alguém fazia café.
“Ainda vou demorar, um café vem mesmo a calhar.” – Pensou.
Avançou rapidamente entre a confusão de secretárias daquela sala ampla atravessada por dezenas fios eléctricos, carrinhos de papéis, arquivos e o que de mais se possa imaginar.
Chegou ao fim da sala, pegou no seu café ainda fumegante, trocou algumas palavras banais com o colega e avançou com o seu café quente por entre o labirinto de postos de trabalho.
Havia subido uns degraus nos últimos anos, naquele lugar e por isso o seu posto era lá mais ao fundo, a sua secretária tinha uma “meia-parede” que a separava do mundo e a sorte tinha-a bafejado com uma janela por de trás de si.
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Há já alguns meses que andava a fazer aqueles planos, para a maioria das pessoas estes não passavam de loucura, muitos achavam mesmo que haviam ficado sequelas graves do seu acidente. Os mais próximos nem sequer queriam falar daquela resolução maluca.
Ninguém conseguia compreender aquilo que ela estava a sentir. Ali. Naquele momento enquanto roía o mesmo lápis de sempre. Enquanto consolidava de vez aquela resolução, enquanto, dentro de si, se preparava para na primeira vez na vida ser responsável pelo rumo das coisas.
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Foi uma fracção de segundo, ali ia ela, de caneca de café fumegante, papéis acabados de apanhar na secretaria de mais uma resistente das horas extraordinárias. Um barulho de telefone a tocar lá ao fundo, um passo mais apressado, alguma distracção, e o seu pé se enrolou num dos muitos fios soltos da sua calha, os papeis caíram para o chão, a caneca desfez-se em mil pedaços encharcados em café, e a seus olhos o mundo desvaneceu-se ao embate com a cadeira e a secretária que estavam prostradas ali a seu lado.
Viu ainda rostos no escuro a correrem para si, sentiu uma dor aguda nas costas e entrou num sono profundo.
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Havia investigado muito, procurado muito e tinha tomado uma decisão.
Ia partir.
Ia deixar aquele lugarzinho malfadado, o seu apartamento alugado nos subúrbios.
Ia deixar todas as pessoas que conhecia, os amigos a sério, os outros que só ocupavam lugar, os colegas de trabalho e a pouca família que lhe restava.
Ia deixar a vida de burguesinha para onde o destino a havia conduzido.
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Quando voltou a si estava imobilizada, enfaixada, inutilizada.
Veio um médico, depois outro. Da sua queda que agora conseguia vislumbrar apenas em câmara lenta, como se de um sonho se tratasse, havia resultado uma vértebra partida.
Esta era bastante perigosa e a qualquer momento poderia fazer alguma pressão sob a medula óssea impedindo-a de voltar a andar.
O tratamento era simples, imobilidade total, absoluta durante uns longos meses.
Primeiro apenas o tecto como visão. A rádio como companhia e algum amigo mais benevolente que perdesse uns minutos a seu lado. Com o tempo as visitas forma sendo mais espaçadas, e as suas solidões mais longas.
Nem um livro, nem a televisão e totalmente dependente de outros teve muito tempo para se rever, para sentir aquela estranha sensação de estar morta em vida.
A sua vida era vazia, de objectos, de sensações, de lembranças, enfim, de grandes decisões.
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A viagem já estava marcada e o passaporte feito. Tudo pronto. Sabia exactamente para onde ia, qual a sua missão. A implicação disso na sua vida.
Hoje era apenas o dia em que deixaria a sua carta de demissão sobre a mesa do chefe.
Era apenas a noite em que iria jantar a casa dos pais anunciar a partida e depois beber um café com os amigos de sempre e explicar a decisão.
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Após longos meses de recuperação, de imobilidade e depois de fisioterapia, medicamentos, avanços e retrocessos, de tanto sofrimento e alegrias em si havia mudado tanta coisa.
Não mais se reconhecia no espelho.
A volta á vida normal parecia-lhe um pesadelo, aquelas coisas que eram suas, ela, ela ali espelhada naquela vida que já não lhe pertencia, aquela normalidade que todos queriam que voltasse.
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Já era dia, estava pronta. Mala feita, os recados dados. Revia mentalmente as expressões de incredulidade, os: “Vais-te arrepender” e “isso é uma loucura”. Tudo, desde as expressões de terror às de admiração. Houve de tudo.
Estava pronta para dar o rumo à sua vida. Ia entrar no avião. Ia rumo a Africa, ia ser voluntária, lá no sítio onde das entranhas da terra sai o grito maior, o grito de pedido de ajuda.
Era inquietante.
Mas ia para um sítio cheio de horrores, e no entanto havia uma ligeireza em si.
Não sabia o que a esperava, a não ser alguém com uma cartolina com o seu nome num pequeno aeródromo nos confins da selva.
Era uma incógnita.
Era a sua vida.
Era um sentido, uma missão.
Era uma decisão sua, e não do destino.
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