quarta-feira, julho 03, 2019

Morreu o Avô.

Morreu o Avô.
O Avô não vive nas nossas memórias da infância. Nunca contou um história, nunca nos ensinou nada para a vida. O Avô não é referência, nem modelo, mas o avô existia.
O Avô vivia à vontade dele, há anos no silêncio dos dias e da sua limitação. 
Diz-se na venda que não havia outro para cavar a terra como ele, o Tigre do Isaías. Chegava ao balcão com duas laranjas no bolso e bebia um litro de tinto. 
Ouço que noutros tempos os carros recorrentes nos caminhos para o Algarve abrandavam o passo a seguir às bombas da Móbil, não fosse ele andar por ali a ziguezaguear encostado à pasteleira ferrugenta.
A bomba já não se chama Móbil, a estrada tem semáforos, há autoestrada....O Tigre já não passa.
O Avô usava um desses chapéus de feltro negro à maltês e tinha os dedos curtos e grossos, como pequenos troncos nodulosos de árvore, retorcidos e exaustos saindo de mãos que nunca faziam festas.
Nos últimos anos sentava-se à esquina da casa a abismar, e fazia-me "espécie". Em que pensaria ele naquela forma de sono acordado... meditava? Revivia memórias? Pensaria tudo aquilo que não podia dizer? Desmontava o mundo?
Quando era criança o Avô trazia melancias no verão, daquelas grandes e riscadas que comíamos sentadas em bancos no quintal com o sumo a escorrer pelos cotovelos para o alguidar no chão. A seguir migávamos as cascas para as galinhas e tomávamos banho com água fria chupada do poço pela motor da rega que hoje teima em não funcionar.
No fim do outono trazia batatas doces que se assavam no lume de chão na casinha mascarrada entre os potes de barro de aquecer água e a lenha incandescente. 
O Avô dizia que tinha bom ouvido, tão bom que ouvia as sementes a germinar debaixo do chão, mas ligava o rádio  bem alto às primeiras horas da madrugada.
Este inverno ensinou-me a cortar lenha num cavalete e danou-se sempre que lhe roubei o trabalho, mesmo que lhe faltasse o equilíbrio e a mim não me faltassem braços.
Dizia que tinha mais dinheiro que terra, mas que importa, não levou nada.
Não levamos nada, nem as memórias. 
Deixamos tudo. 
O banco vazio na esquina da casa, o silêncio nas madrugadas, as laranjeiras por regar e a certeza que não dissemos, não fizemos, não vivemos tudo o que havia para tentar.
O Avô morreu. 
Não passou a ser melhor, nem pior, não é uma referência, não nos ensinou nada para a vida.
Existe com uma caricatura do passado, um lembrança das nossa raízes humildes, do muito que crescemos desde os tempos da terra revolta à enxada. Quando as pessoas só tinha dois nomes próprios, os nossos Avós vão para a terra com lápides resumidas.
Aqui jaz Marino José.
Viveu sempre à sua vontade.






segunda-feira, julho 01, 2019

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Ontem, sentada num banco de espera de estação do Oriente, bebendo o meu sumo de laranja natural acabado de espremer para uma garrafa de plástico de uso único, observado o rebanho de pessoas indo e vindo. Muitas,  mastigando, bebendo, consumindo, carregando malas, correndo ao desvario ou apenas existindo ali ao ritmo a que os comboios trepidavam nos carris... Ocorreu-me que somos mesmo capazes de estar condenados. A engrenagem não tem travão.
Todo e qualquer esforço noutro sentido é como rolar a pedra de Sísifo.