sexta-feira, março 22, 2024

Anatomia dos 4kgs…



O rascunho deste texto sobrevive nas entranhas do blogue desde o verão quente de 2014, e voltei a pegar nele porque me tenho questionado sobre o que aconteceu a todos aqueles rostos esquálidos que vi nos corredores do Santa Maria, quando eu própria lá andava em desequilíbrio.

O que fizeram esses desequilíbrios de nós? Quem teríamos sido sem a dismorfia, sem a ausência de autoestima enquanto construíamos adolescentes e nos preparávamos para ser mulheres inteiras?

Quem somos hoje, duas décadas depois? Pessoas equilibradas ou como antigos dependentes a um evento de perder a noção espacial e todo e qualquer reflexo passar a ser um casa de espelhos destorcidos capaz de nos enlouquecer?

Há uma década, a minha pele parecia-me apertada tal como me parece agora.

Na altura não tinha balança em casa e pesei-me no ginásio, tinha mais 4kgs do que o meu corpo pós-adolescente usou durante os meus 20’s.  A ideia tornou-se uma obsessão. A obsessão com os 4kgs. Eu sentia-me mais pesada, mas era uma abstração, agora que era um número, não parou de me perseguir, como dois sacos de arroz presos a cada pé.

Passei a adolescência entre psicólogo e psiquiatra, entre o prozac e a anemia. Entre ciclos de jejum e festins alimentares. Anos a habitar um corpo que eu resolvi matar à fome porque a imagem que eu tinha de mim era mais frágil, mais quebradiça.

Porque eu ocupava demasiado espaço, nunca fui delicada, sempre tive ombros largos e após uma infância muito próxima da hiper actividade evoluí para uma adolescência melancólica e apática com pouca energia para viver.

Há 10 anos, como agora, uma parte racional do meu ser não queria saber disso, observava o mundo de um outro angulo. A menina de 15 anos, essa estava e está assustada, bastam 4kgs mais persistente para que essa construção, essa persona confiante e equilibrada se sinta ameaçada. Que em alguns momentos na vida eu sinta que posso mesmo perder o controlo dos dias e estar novamente só no escuro a desejar intensamente ter um ar pálido, ossos salientes...

Todos esses sentimentos num mundo completamente obcecado com o comer. Com as televisões pejadas de Master chefs, os restaurantes sorrindo com caras Gourmet, o mundo dos vinhos a convidar à constante degustação eu aterrorizada com o simples facto de que tenho de comer para viver.


Agora como nessa altura não estou gorda. Continuo apenas pesada para aquilo que eu acho que deveria ser. Esse é um conceito que sempre terei distorcido. Tenho 40 anos. Agora, como quando tinha 15 não acho que seja influenciada pelos padrões de moda vigentes, não sigo influencers nem me quero parecer com nenhuma estrela. Mas "Nothing Tastes As Good As Skinny Feels"o mantra dos 90´s continua-nos nos ossos.

Aos 40, como aos 15 o controle que eu devia ter do meu peso continua a ser uma metáfora desaforada daquilo que devia ser o meu controlo da vida, num sistema complexo de esforço e recompensa, de ato e consequência.

A anatomia dos 4kgs não se confere numas calças apertadas, nem em cortar nos hidratos de carbono ou correr menos para levantar pesos e estimular o metabolismo. Os 4kgs são uma ferida antiga, uma cicatriz que me lembra que o equilíbrio da nossa mente é tão ténue que às vezes duvido que possa realmente existir.

sexta-feira, março 15, 2024

Viver com os outros...

Primeiro habitamos um corpo, depois uma casa, uma rua, uma vila, uma região, um país e o mundo.
Habitar, não quer dizer existir, nem fazer parte. Podemos viver a vida todo num corpo que ignoramos, numa terra que desconhecemos, viver sem nos envolvermos numa comunidade. Estamos, ocupamos espaço.

Eu preciso de habitar espaços que me reflictam. Um corpo que não se dissocie da minha mente, casas cujas paredes me relaxem perante a visão de coisas familiares, terras que possam matar a sede de estar só ao mesmo tempo que alimentam a fome de multidão.

A terra pequena não faz uma coisa nem outra. Nunca estamos sós numa rede familiar que se ocupa de nós, e nunca estamos emersos numa multidão que não existe. Um paradoxo, aqui onde me devia sentir relaxada e descansada sinto-me mais cansada que nunca.

As casas que são habitadas por várias pessoas nunca caiem no esquecimento dos dias, não há penumbras familiares e os objectos nunca são abandonados à mercê do tempo. A co-vivência em consciência obriga-nos a pensar no espaço dos outros e nunca termos um momento de autêntica redenção. O deixar estar fora da ordem universal, viver com os outros é manter a vida arrumada numa certa disposição.

Não se deixa o jantar para um tempo indefinido, nem se abre uma garrafa para degustar a solidão quando há com quem a partilhar. O rádio luta com a televisão, as janelas trocam-se com portas na luta das correntes de ar que não agradam a todos.  E morrem-nos as brisas frescas na pele trocadas por ares estagnados.

A falta que nos faz o silêncio...