Lembro-me de ter sido sempre a menina do Papá, que nos idos dos anos 90 me levava a passear ao domingo com sapatos de verniz e vestidos de veludo e me comprava gelados e sempre se ria quando as pessoas lhe perguntavam como se chamava a neta.
Filha tardia, numa situação no mínimo
desajustada para a época, enquanto criança nunca me faltou mimo de pai.
Lembro-me do dia em que me ensinou a andar
de bicicleta e em como eu, no entusiasmo tirei as mão do volante para lhe
acenar e acabei estampada no muro do cemitério e depois, quando finalmente eu
aprendi a andar na velha BMX vermelha, lembro-me das grandes voltas que
dávamos, 15, 20kms na manhãs de fim-de-semana no caminho do Setil ladeando a
Lezíria e vivíamos aventuras, apanhávamos chuva e o meu pai contava-me sempre
histórias sobre o mundo e os países todos onde já havia ido e havia sempre algo
de novo para falar.
E depois um dia isso desvaneceu-se. De um
momento para o outro tornámos-nos seres estranhos. O meu pai descobriu em algum
ponto que eu era uma menina e que havia uma discrepância enorme entre a preparação para ser totalmente independente que ele sempre me tentou dar e a
conduta daquilo que era para ele uma menina. Porque as meninas não fazem, não
vão, não devem.
E eu, enquanto adolescente, como agora,
nunca estive interessada nesse tipo de "Não".
Devo de lhe guardar semelhanças, no fundo.
Só muito mais tarde, já adulta voltámos a encontrar
um ponto de interesse comum, a corrida.
Nunca me interessei por desporto, apesar
do meu pai sempre ter sido atleta e dos seus esforços, das bicicletas feitas
por medida, das muitas provas a que íamos... Fiz basquete uns tempos... fumávamos atrás do
pavilhão, enganávamos os pais sobre os horários dos treinos, inventávamos jogos
para ir ás afterhours de domingo, frescas acabadas de levantar. Desportos desses...
Quando eu comecei a correr, e foi uma
decisão apenas minha, reencontrámos um ponto de acordo, um interesse, algo que
nos colocou de acordo apesar dos feitios, das visões díspares do mundo e do que
fazem as meninas. E isso foi um elemento pacificador, embora eu nunca mais
possa ser uma criança e o meu pai o meu melhor amigo, podemos finalmente
conviver.
Tempos depois inventei o campeonato
familiar onde o pai apesar da idade quase sempre ganhava. "Paizão 1 -
Angie - O ", Mas este ano ganhou menos, este ano em que eu nem estou muito
bem, eu ganhei o campeonato familiar.
Mas em vez de me felicitar, depare-me com
o peso das décadas no rosto dos outros. Um ano, dois anos, no outro anterior e
esse. A cada ano que passa, a cada traço de semblante diferente, a cada
desalinho de pensamento o Tempo confronta-nos com a finitude. Ao principio, não com a nossa mas com a dos outros.
O ano em que eu ganho o campeonato
familiar, não é o ano da minha "vitória", mas o ano da constatação de que eles não
estarão cá sempre. O Tempo novamente.
E quando destilado o que nos resta do
tempo? Das pessoas que somos?
No ano em que perdi a minha avó, em que
conscientemente sei que não vou ouvir mais aquela voz, que não haverá nunca
oportunidade de dizer o que ficou para dizer, em que os cheiros dos seus
lugares apenas causam saudades que se apascentam com memórias, ganhar o
campeonato familiar é uma forma do tempo me dizer para ter em atenção à
finitude dos outros e em ultima instância, a minha.
O que faço do tempo... que escorre entre os dedos como areia, que escasseia apesar de nos parecer termos todo o tempo do mundo. Que vida quero viver, já que só tenho uma, parece impor-se na reflexão do que deve ser os próximos tempos desta vida.
Porque o tempo acaba-se...para todos um dia. E o meu, rarifica-se a cada dia que passa...
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