quinta-feira, fevereiro 12, 2015

A distopia Laboral...


Lembro-me do meu primeiro dia de trabalho. Era uma pequena de 13 anos e fui atrás da irmã mais velha porque queríamos muito ganhar dinheiro no verão para gastar na feira de Agosto.
Fomos para a apanha do tomate, eu durei meio dia e ganhei 1000 escudos.

Mas a minha desistência não me deixou desempregada, passei o resto do verão a ser a secretária da irmã, colada ao telefone fixo com ordens para dizer que "A Mana foi para a praia", e pago ao telefonema. Outros tempos.

No ano a seguir enchi-me de coragem e fui, fui as duas semanas. Que orgulho, comprei as minhas primeiras botas Yellow Cab, uns escandalosos 11 contos de sapatos e fez-se a feira, sem se pedir cá esmolas a ninguém, porque aos 14 anos já se quer mandar na carteira.

No ano a seguir trabalhei todo o mês no café da aldeia. Ganhei 60 contos limpos, com almoço e jantar. Nesse café já havia trabalhado a minha irmã, e duas décadas antes a minha mãe. Ter 15 anos e trabalhar no café é aturar de tudo, mas em 1999 60 contos davam para brincar o ano lectivo todo, davam para o tabaco, para as noitadas e para as compras na Zara nas visitas ocasionais a Lisboa, em 1999 eu senti-me pela primeira vez rica, abri a minha primeira conta no banco, céus como a independência era boa.

A partir daí sempre trabalhei, e sempre evoluí no trabalho. No verões seguintes fazia os três meses de férias grandes no restaurante de praia. No ultimo ano que lá trabalhei, em regime de alimentação e casa paga, ganhei 600€ limpos por mês mais uma média de 25€ de gorjetas por semana, sem  contar com o que me era dado directamente. Em 2002, com 18 anos e o 12º ano acabado de fazer eu ganhava mais do que em muitos trabalhos me oferecem agora.

***

Nos últimos 13 anos, entre a licenciatura, o mestrado e cursos laterais devo ter passado 7 anos dentro das salas de aula. 

Depois de 2006 fui o Gabinete de marketing de uma Universidade que abandonei porque o meu patrão me assediava descaradamente, trabalhei um ano de forma ilegal num jornal da terra, fui sócio-gerente de uma empresa, dei aulas no Ensino Superior, dei formação profissional, andei a promover vinho, carreguei muitas caixas dele, que a bem dizer parece que ganho menos a fazer isso do que ganhava quando só queria dinheiro para as fichas dos carros de choque.

Amanhã é o meu ultimo dia de trabalho, embora eu esteja de férias há várias dias. Mas amanhã, oficialmente acaba-se um ano em que eu trabalhei muito, investi, acreditei e vesti uma camisola que muitas vezes senti vestir sozinha. O mundo do trabalho é ingrato, somos mal mandados de mais para ser verdade na maior parte do tempo. Infelizmente. 

Hoje fui à terceira entrevista em duas semanas. Jogada mais uma vez para uma sala de ar rarefeito, cheio de pessoas enfadadas e recebida por alguém enérgico e despachado. Passam-me de novo um formulário para as mãos, o qual recebo com total indiferença e preencho de forma displicente como fiz questão de dizer a quem me entrevistou. Não é suposto a pessoa com quem eu vou falar ter lido o meu currículo?

Numa das entrevistas anteriores esse formulário ia ao ponto exaustivo de recolha de dados pessoais e financeiros que me pareceu a pura invasão de privacidade.

Quando me telefonaram ontem eu insisti: "É comercial? Veja, vou de propósito a Lisboa, se é uma oferta para comercial não estou interessada." 

Mas pelos vistos, estas empresas devem ganhar comissão à entrevista, mas assegurada de que havia mais opções lá fui eu juntar-me a uma sala cheia de gente indiferenciada. Novos e velhos, de todas as cores todos nós a responder anúncios para Técnico de Comunicação e Marketing e a sermos convidados para fazer parte de uma grande projecto de vida, que é vender pacotes de Telecomunicações de porta a porta.

Entrei, ouvi. Disse que me parecia mal que me tivessem mentido sobre a proposta a que ia, que não tenho a menor vocação para comercial, e vim embora.

Na outra semana fui jogada para uma sala de adversários onde era suposto me apresentar em Inglês, fazer o tal "Elevator Pitch" e discursar sobre como pensava internacionalizar uma Start Up que ainda nem está bem "nacionalizada". Nessa sala de gente estudada a fervilhar de ideias e experiências, de anos vividos no estrangeiro e de nomes de multinacionais cintilantes escritos no topo do currículo vi a triste realidade de uma Era onde o talento se juntou por lutar por ordenados que começam nos "650€ e poderiam chegar aos 800€ conforme a experiência demonstrada".

Isto, para viver em Lisboa onde a renda de um T1 começa nos 450€ e não se sabe onde acaba.

Foi um fim de tarde chuvoso, um vento forte e gelado a vir do mar. Sai de lá com a certeza que não voltaria. Eu, se tivesse de escolher não escolheria a mim. Basta ouvir, ver. 13 anos a entrar e a sair da escola e nunca antes me tinha sentido ultrapassada pelas necessidades de um mercado de trabalho que se transforma muito mais rápido do que nós nos conseguimos reciclar.

Balançando pela descida à chuva como cheiro a mar de fundo, lembrou-me os fins de tarde do fim de verão, das marés vivas e das trovoadas de Agosto. 

Pensei: "De todos os trabalhos que tive, nunca foi tão fácil saber do meu lugar no mundo, nunca fui tão necessária e recompensada como quando trabalhei no restaurante da praia..."

Ironias da vida.

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