quarta-feira, julho 11, 2007

"O amor em tempos de cólera"

“Começou com a simplicidade rotineira. Nos tempos em que ainda tomava banho sem ajuda, o Doutor Urbino tinha voltado ao quarto e começou a vestir-se sem acender a luz. Ela estava, como sempre, a essa hora, no seu tépido estado fetal, de olhos fechados, a respiração ténue, e esse braço de dança sagrada sobre a cabeça. Mas estava, como sempre, meio a dormir, e ele sabia-o. Ao fim de um demorado rumor de roçar de linhos engomados na penumbra, o Doutor Urbino disse para consigo:
- Já há uma semana que tomo banho sem sabonete.
Então ela acordou de vez, lembrou-se, ficou furiosa contra o mundo, porque, de facto, se tinha esquecido de repor o sabonete na banheira.
...
Na verdade, não tinha passado uma semana, como ele dizia, para lhe agravar a culpa, mas sim três dias imperdoáveis, e a fúria de ter sido apanhada em falta acabou por faze-la sair dos eixos. Como sempre, defendeu-se atacando.
...
Cada vez, que nos três meses que se seguiram, tentaram resolver a discórdia só conseguiram atiça-la. Ele não estava disposto a voltar enquanto ela não admitisse que não havia sabonete na casa de banho, e ela não estava disposta a recebe-lo enquanto ele não reconhecesse que tinha mentido propositadamente para a atormentar.

Quando recordavam este episodio, já no remanso da velhice, nem ele nem ela podiam crer na verdade assombrosa de que aquela discussão fora a mais grave de meio século de vida em comum, e a única que lhes deu aos dois vontade de desistir e começar uma vida diferente.”


“OAmor em tempos de cólera”
Gabriel Garcia Marquez

È engraçado como uma pequena historieta dentro um magnifico romance como este nos pode chamar tanto a atenção. Porque é tão simples, porque qualquer um de nós em algum momento da vida já se chateou com outra pessoa por causa de pequenas coisinhas da vida doméstica. Porque na simplicidade das palavras, nas cores claras com que nos é pintado este quadro se encontram expressões tão humanas.
O livro ainda nem vai a meio, mas a vontade de falar sobre ele já é muita.
Ando a repetir-me, mas quando agarro num livro de Gabriel Garcia Marquez dá-me esta vontade enorme de ler os que ainda não li, de reler aqueles que já li, uma vontade imensa de que a sua obra nunca acabe.
Li também esta semana na imprensa que este livro está em vias de ser um filme.
Poderá um filme conter todas as imagens, todos os cheiros evocados, todas as sensações que um livro como este nos transmite?
Estou curiosa...

Sem comentários: