terça-feira, junho 29, 2010

Textos I

Tenho ombros largos, avós do campo, sangue vermelho nas veias e nomes que não deixaram rasto.

Venho de vidas que se perderam nas enxadas que cavaram esse Portugal, de que não nos lembramos mais. De homens que afogavam as mágoas em copos de vinho tinto e de mulheres que carpiam os desaires de joelhos na tijoleira fria da capela aos domingos.

Desse povo de bata às flores e de lenço foleiro no cabelo, que ia às feiras de verão e se lambuzava nas farturas enquanto jogava a sorte numa barraca de rifas.

Essa gente sem poiso, sem paixões nem letras, sem papéis nem apegos. De famílias mestiças, filhos bastardos, sujos e esfomeados.

O Portugal da velha senhora que imigrou e metade voltou novo-rico e a outra mais pobre do que foi.

E de gente rude que passou fome para que nós fossemos doutores sem cuidados, com futuro e nenhum ideal por que lutar.

Deles todos que enterrados já, e renegando as suas origens nas terras barrentas das vinhas e nos campos poeirentos do trigo, nos mostraram um mundo que era novo e mais fácil no qual só se poderia subir.

Sou assim, feita de ombros largos, de força bruta. Desta tendência para engordar combatida até à última gota de suor, nesse esforço de ter tez mais branca e cintura afunilada. Rezando para que não termine com as ancas largas antes dos trinta. Querendo sempre essa imagem que não calha a quem foi talhado para carregar cântaros de água à cabeça.

Assim de palavras secas, nessa crença de que o sacrifício trás a recompensa, que a acção leva à consequência.

Calhou-me a mim, essa geração desapegada, depois da outra que era rasca. Já não sou para aquilo que a natureza me talhou.

Saí com essa imagem esbatida de ruralidade como se ela só existisse nos álbuns poeirentos perdidos nas caixas velhas da família.

Mas existe por ai. Nesses vales escondidos das estradas principais. Nas curvas dos arneiros, por detrás dos eucaliptos e no cimo dos montes onde não se consegue ir.

E segue vida nas festas de verão, nas colunas que debitam decibéis de trocadilhos jocosos que sobrepõem os mesmos compassos simples, repetitivos, ano após ano.

Existem os mesmos lenços desbotados e as batas tristes que a minha geração já não quer usar.

E existem as unhas sujas de terra, o frango assado às dez da manhã, as relações esquisitas, as famílias desequilibradas, a génese carnal de quem não se pode dar a outros luxos.

E sempre que visito esse espaço, essa história velha de um país que já não é o meu, reconheço a inevitabilidade do que somos e de como evoluímos assentes em estacas de pau. Frágeis e prontas a apodrecer.

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