quarta-feira, janeiro 23, 2013

A arte de passar pela chuva sem se molhar...




O dilúvio era bíblico, um exagero de dias cinzentos, opressivos e entediantes.

O cheiro a bafío alastrava pelas escadas,  a vida dentro da casa hibernava naquela atmosfera de estufa onde a humidade era descontrolada. A roupa molhada espalhada, o caos doméstico, a vida suspensa esperando por uma trégua.

As janelas fechadas, chorando a indiferença dos dias, engarrafando o ar estagnado, barrando os sons do mundo.

Estava nesse torpor dos dias, sendo indiferente, existindo apenas. Imaginando areias douradas e distantes ou os raios de sol beijando as encostas da serra. Estava nesse tédio revendo a vida, olhando pequenos instantâneos.

"Havia sempre passado pela chuva sem se molhar." Pensou.

Vivendo em mar de águas calmas. Sem exageros, sem extremos, sem extravagâncias.

Sem grandes riscos...sem grandes recompensas.

Nesses instantâneos de coisas, de pequenas vitórias festejadas em descrição, de derrotas vividas no silêncio, encontrou-se nessa apatia geral.


Essa forma estranha de se mover na lentidão, no escuro do quarto, sem tocar nos móveis. Sem fazer cair os bibelôs. Esse passo em silêncio, planeado...essa apatia que impossibilita a extravagância.

Os rasgos de génio ou as tristezas capazes de arruinar a vida.

Essa apatia geral de sentido. Como se na chuva ocupasse só aquele estranho vazio onde nada cai, e o dilúvio chegasse até si em segunda mão, molhando-lhe apenas os pés, quando a terra encharcada se recusa a engolir mais água.

Abatia-se sobre si essa ideia opressiva de resignação perante a vida. Não a sensação de falha, só a poderia sentir se tentasse.

Mas essa sensação de apatia, de tédio de quem não falha porque não tentou.
Não gritara alto, nunca ralhara a ninguém...nunca fugira ou insistira em ficar. Sentia pouco, ou muito...de mansinho...na apatia.

E então o tempo existente na sala pesou sobre si. Tornou-se espesso, o tempo impregnado de água, frio.

O tempo perante si, ecoando pelas paredes num tic-tac apressado, passando ao ritmo a que o sangue lhe corria nas veias.

Aflito. O tempo afligindo-se por fim. Ansiando... "obriga-te, sai do ponto vazio, ocupa espaço...ignora a arte de passar pela chuva sem te molhares...."

Sem comentários: