domingo, agosto 18, 2013

“Espero alegremente a saída – e espero nunca mais voltar – Frida”.


Fixava o tecto branco há algum tempo, um momento de lucidez que lhe tinha dado. O tecto branco, uma tela de cinema, imaginava, nunca tinha ido a um. Tantas coisas que nunca tinha feito, e agora era tarde.
Estava presa naquela ruína de corpo havia demasiado tempo, uma eternidade. Tinha de chegar uma hora, um momento em que a natureza lhe permitisse partir.

Se havia limbo, se pagamos nesta vida pelos pecados das outras, aquela ruína tinha sido o seu castigo. Um corpo rude, destinado a sofrer.

Gostava de lembrar do prazer de algo, talvez dos dias da juventude, mas esses dias são tão longínquos que surgem por entre o nevoeiro. E ainda assim, já nessa época lhe doía. Os ossos daquela estrutura, larga de ombros, filha de gente do campo. Lembra-se dos pés frios dentro da água do arrozal, das feridas que não saravam, os tornozelos.

Olhando assim para trás, aquele ambiente asséptico, estar ali parada, presa em si era quase bom. Não era mais alta e os ombros mirraram sobre si. Murchou. Mas estava morna, havia sempre o que comer.

Foi tarde, mas vieram os filhos, eles visitam, ouve-os, ao longe. Mesmo quando só já consegue fixar o tecto. Lembram-lhe desses dias, as dores nos quadris e ela ainda dentro do arrozal, até ao ultimo momento. Até que por entre a água fria lhe descia um torpor liquido e quente de aguas a rebentar dentro de si e uma dor aguda a gritar por entre a jornada de todas as outras mulheres e homens, parceiros de escravidão.
E ai vinha a carroça,   o caminho de terra batida e as rodas nos rodados gastos. Cada pedra a passar por baixo de si, cada solavanco, cada sopro de vento a remexer-lhe as entranhas.

Dor. As moças hoje dizem que é bom fazer filhos. Falam disso na televisão ainda chegou a ver, quando conseguia fixar algo para além do tecto. Mas não lembra disso. Só de parir. Muito devem ter mudados os homens. Vê-se nas novelas. Ele é beijos e abraços, não lembra de um dia ter tido algo assim, nunca vira. Os netos vêm e fazem-lhe mimos, mas ela só já fixa o tecto. Ingrata a vida, pensava: "Quando por fim merecemos carinho, não estamos em condições para o receber."

Ouvia-os falar e perguntavam coisas e quase desesperavam por respostas que ela não conseguia dar. Porquê? Porque continuam a vir como se esperassem que ela ressuscitasse da inevitabilidade da sua morte?

Daquela morte em vida, a do silêncio perpétuo que apenas balbucia tolices?

Desde a primeira dor até ali nada havia a fazer. A cada osso que se encolhia e se deformava, a cada nova maleita a todos esses anos de inutilidade em que se arrastou nas muletas pela vida. Dores. Umas maiores, outras pequenas, mas dores sempre. Dores do frio do inverno, do calor do verão. da humidade, da fome, do comer de mais. Dores do sangue a circular nas veias, as veias a doer por terem sangue a circular.

Suspiros de dor e os pulmões a doer por suspirar.

Continuava a fixar o tecto, era uma momento de lucidez. Não estava mais a imaginar a horta por detrás da casa nem a mandar ninguém regar. Nem a ceifar o arroz de pés enterrados em água. A ser jovem, achar que podia aguentar.

Fixava o tecto e esperava que fosse agora. Ou depois, mas que fosse. 

De uma certa forma, quando lhe acabava o momento de lucidez estava morta...








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