quarta-feira, junho 24, 2015

Histórias da Cidade I



Os dias longos do inicio de verão tinham esse dom de a deixar bem disposta. Sair do trabalho com luz, sentir as ruas vibrantes da cidade ainda cheias de um dia que teima em não acabar. Apinhadas de gente, de táxis, de eléctricos e os seus sons metálicos, de tuk-tuks e outras invenções com motores berrantes todos fundindo-se nos sons das esplanadas e com as gaivotas guinchando junto ao rio.

Atravessava o Terreiro do Paço vinda da Rua da Prata e sentia-se sempre engolida por todo aquele espaço em frente ao rio, pela amplitude dos sons e a ligeira sensação trepidante debaixo dos pés a cada novo carro rolando nos paralelos. 

Desistiu mais uma vez do elétrico, o 15E ia demorar mais 6 minutos a chegar a mais uma paragem no seu caminho até Algés, era o que informava o monitor, e a paragem estava cheia de gente, respirou fundo e seguiu a pé.

Entre o cais das colunas e o cais do Sodré vivem-se fins de tarde pachorrentos, esponjados  pela praia de cimento.

Os cheiros do rio, os tabacos, os carros apressados e uma promessa de mar que vem de longe criam um odor exótico que só se entende ouvindo a mescla de línguas que sobrevivem abafadas pelo rolar dos carros nos ripados de madeira e aço por cima do rio.

Ia de passo largo pensando nisso tudo e no comboio que tinha de apanhar. Ia contando as luzes que se acendiam na outra margem, invejando os ténis da miuda sentada no muro, rindo das tentativas de tirar fotografias dos desconhecidos, agoniando-se com o vinho de pacote partilhado pelo casal junto à água, pensando em  nada.

Avançando pelos sinais de perigo avisando que se pode escorregar e cair ao rio até ao pequeno largo onde um pequeno grupo se prepara para tocar.

A guitarra de blues soa ainda no ensaio dos acordes e à sua passagem a bateria começa a bater ritmada marcando-lhe os passos.

Juntos aos muros do rio as pessoas juntam-se nas mesas de esplanada e nas cadeiras de lona existindo de forma despreocupada.

Sentiu-se por momentos muito viva, como se tudo aquele cenário lhe pertencesse, como se não fosse a sair do trabalho para apanhar o comboio suburbano a caminho de casa onde chegará demasiado tarde para jantar.

No ritmo dessa bateria, desse espirito jovem brilhando à beira rio os seus anos deixaram de contar e o seu passo ganhou um porte de confiança, como se fosse apanhar uma carruagem dourada a caminho de um futuro excitante pelo o qual mal pudesse esperar.

O ar cheirava a limas e a hortelã e os copos bonitos passavam nas mãos dos que se iam sentar nas cadeiras de lona com vista para o desaguar do rio no mar.

Nesse momento de mindfullness, essa conjugação de cheiros, de sons e de fantasia, a vida pareceu-lhe ser tudo o que podia ser.

Com os passar dos metros o ritmo da bateria tornou-se distante até ser indistinto dos sons da cidade. Parou no fim do passeio junto a uma sarjeta suja para deixar passar o autocarro que se apressava para o Restelo e ouviu distinto o soar dos avisos da estação. Saiu de letargia, correu e tropeçou no velho à estrada da estação, deixou-o a protestar para num passe de mágica entrar por portas que se começavam já a fechar.

Encontrou lugar sentada e respirou fundo enquanto na outra margem a luz do dia se substituía pelas luzes da noite.

Apanhara a carruagem certa, e ainda assim esta chegaria demasiado tarde para jantar.



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