quinta-feira, julho 12, 2018

Dois mil dez oito, ou o voltar a casa



A casa fica num fundo de rua onde o alcatrão acaba. Antigamente o alcatrão nem lá chegava, hoje vivemos com ares de modernidade, um pé no asfalto outro na terra batida ouvindo os pássaros gritando pela manhã enquanto discutem os detalhes das suas vidas.

O aroma do pinhal mistura-se por vezes com o da terra remexida nas manhãs que acordam a cacimbar. De tempos a tempos, os canhões da plantação de mirtilos disparam para afastar animais famintos, nunca antes se haviam ouvido, mas este ano os Javalis desceram da serra e começaram a fuçar pela mata rasa nas madrugadas. 

Ao meio da tarde os velhos sentam-se à esquina da casa numa meditação pouco esclarecida, em silêncio remexendo as bainhas das camisolas e murmurando histórias, questionando a memória, revivendo toda a vida num lugar solitário que parece ser cativo. As velhas perpetuam o manto preto debaixo das batas e o lenço na cabeça a amparar o chapéu de palha, não importa qual for a estação.
 
No fim da tarde ouvem-se os motores da rega, os tratores que voltam e de noite, um cão longínquo pode uivar, de resto o silêncio, as cigarras e o breu do mato. 

Por esta altura o sol deveria se por em chamas por detrás do pinhal, mas 2018 não nos trouxe verão nem melancias, só as melgas e as formigas e os tomates ainda por amadurecer por debaixo da rama.

Quando eu era criança andávamos por aqui de pés descalços na areia, nas tardes quentes do verão fechavam-se os estores porque ninguém poderia aguentar a brisa quente das três da tarde no Estio. 

Quando abríamos a porta, só por curiosidade, a luz forte do dia encandeava-nos os olhos, os pés ardiam na soleira da porta escaldante e o ar rareava nessa massa quente que nos era dada a respirar.

Ansiávamos pelo fim da tarde e pelas guerras de mangueira com a água gelada saída do poço. Lembra-me o cheiro da fruta, da terra molhada depois da rega, das voltas de bicicleta depois do jantar e dos gelados na esplanada da Chaminé onde íamos a pé gastar tempo à noite porque não se conseguia estar em casa.

As décadas que nos separam desses dias são tão longas, mas tão curtas que ao mesmo tempo que conseguimos fechar os olhos e as tocar, nada em nós é mais igual. E embora seja o mesmo sol que bate nos chapéus de feltro preto e sejam os mesmos copos de três servidos nos balcões de mármore manchados e gastos dos tascos, a vida tal como a concebíamos mudou.

A verdade é que agora,  o alcatrão chega-nos à porta de casa.

Sem comentários: