quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Na hora...

Lembro-me do caminho de terra até ao monte, as ervas pelo carreiro do meio e os campos lavrados. As casas sempre modestas e inacabadas e os rostos das pessoas que já tinham longas vidas.

Lembro do curral, das ovelhas e das vacas. Do leite quente acabado de ordenhar, peganhento e coalhado, gorduroso, impossível para quem cresceu a beber o leite do Treta Pak.

As galinhas que andavam por ali desgarradas, os gatos ramelosos, o milho, as batatas doces, as couves e as melâncias no verão.

O rosto das pessoas cristalizado em memórias, como daguerreótipos, imagens pouco definidas e longínquas.

O cheiro do verão.

Memórias, o lugar das pessoas na nossa vida, na hora da sua morte.
Qual será o nosso lugar nessa hora?

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Os dias...

Os dias estão maiores já se nota. As luzes espalhadas pelo caminho acendem-se ainda de dia como se estivessem mal sincronizadas. Saio e ainda se vê o caminho de terra batida, levo os olhos a esse chão, essa obra inacabada. Ora seco, ora encharcado, transformado num lamaçal. Cada buraco que não o era no dia anterior, a terra pisada, as pegadas.

Minhas ainda? Haverá mais ténis Nike 38,5 por aqui? E os rodados dos carros, dos tratores, as pegadas de animais indefinidos, que fazem todos eles por aqui? Há casas fechadas, terrenos agrícolas, sobreiros sós. As cegonhas, o burro e a horda de cães que se agita em quintais aleatórios ao som do meu passo.

Cheira a madeira no momento da queima, notas fortes como a espinha dorsal de um perfume. Cedro, pinho, terra e silêncio, tudo embrulhado na maldita humidade de um inverno que não se decide a ser frio e chuvoso e de tempestade, escolheu ser limbo.


Sempre pintaram o inferno como um sítio em chamas, não creio. O fim dos tempos será cinzento e húmido. Sem tréguas ou um raio de sol, só nós de roupa encharcada colada ao corpo, ténis sujos de lama a tremelicar de frio. 


segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Trivialidades...

O mundo deve estar louco, acendi a luz e ando a matar melgas em fevereiro. O que me dá nos nervos os zumbidos a cortar o silêncio da madrugada, as melgas e o cão que depois de velho entrou no cio.

Nos cantos das paredes junto ao tecto cresce a olhos vistos uma mancha de humidade, uma mancha inofensiva, mas ofensiva para o meu sentido do mundo. O cinzento das paredes que nunca mais será exatamente aquele que eu escolhi, a mancha penetrando nos meus quadros. 


Nada mais parece estar no lugar. Não chove, apenas vivemos envoltos neste mar de dias cinzentos, peganhentos de saturação de água no ar. 


As laranjas caiem espontâneas para o chão, a roupa não enxuga e entretanto estamos em fevereiro, a pensar trivialidades. Onze meses de trivialidades. Já vi formigas no quintal, como se lida com formigas no inverno? Como se fosse normal?


E o raio da televisão que continua a vomitar tragédia, e nós cansados já não vemos números. Pensamos no que vamos almoçar amanhã, sim, fazer almoço é algo que tem de ser pensado. As compras feitas antes. Por agora já nos devíamos ter habituado a fazer um menu, acabar de vez com essa coisa da espontaneidade.


Estava a remexer nas bainhas da blusa, a puxar fios com as unhas mal limadas que os tempos não me deixam ir arranjar e estava a pensar que já passamos da vida adiada. Adiada parece que vamos partir de onde parámos e continuarmos a ser quem éramos antes dos traumas e dos cabelos brancos do último ano. Não, isto parece-se mais com um assalto, uma vida roubada. E nós de luto, sem saber ainda como a chorar.