terça-feira, fevereiro 27, 2007

Vinho...


Chegou a casa, aquele silêncio. Portadas da janela fechadas, paredes solitárias, preenchidas apenas pelos adereços comprados, iguais aos de tantas outras pessoas. Iguais aos que permanecem noutras casas, talvez cheias de vozes, de cores, de cheiros. Mas a sua casa é vazia, só sua, apenas com o seu cheiro espalhado pelas assoalhadas, ninguém mais habita ali.
Larga os sapatos altos a um canto com um suspiro de prazer, solta os cabelos, deixa-se cair inanimada no sofá. Hoje seria uma noite especial, hoje havia companhia para o jantar, comprou um bom vinho. Ninguém vem.
Exasperou-se ali sozinha olhando aquelas paredes, pousou os olhos na garrafa de vinho, ali pronta para uma noite a dois, pronta para despertar corpos, pronta para a transportar para outros lados.
Abriu-a impulsivamente, que interessa se está sozinha, se o mundo se esqueceu de si? Se se preparou para a aventura e agora está presa no seu castelo só.
Buscou o seu melhor copo, pé alto, em balão, encheu-o. Apreciou a cor e a textura do vinho à luz, riu. Pensou para consigo que aquele era um gesto vazio, estilizado, que percebia ela de vinho?
Bebeu o primeiro trago, de vagar, a sua expressão contorceu-se, era áspero, mas não agressivo, mas a primeira impressão não era a delicia. Experimentou mais uma e outra vez, e os goles foram tornando-se maiores, o seu corpo começou a aceitar, não era uma delicia, não como o chocolate, mas fazia-a sentir coisas, o seu palato absteve-se de opinião.
Procurou um cigarro escondido naquela caixa, que haveria de estar na gaveta da esquerda bem por debaixo do televisor. Havia deixado de fumar, mas hoje, hoje era um dia especial. Hoje estava sozinha, hoje percebera que estava mesmo sozinha, que as suas companhias esporádicas começavam a escassear, que as suas aventuras eram agora menos regulares, menos intensas, hoje percebera que perdera algo pelo caminho, que era esse algo que faltava quando abria a porta de sua casa sempre vazia, sempre escura e sem ar.
Acendeu o cigarro, aspirou o primeiro trago de fumo e deixou-se ficar a ver o fumo sair de dentro de si lascivamente, encheu o copo.
Sentia agora o seu corpo quente, sentiu a sua mente a desprender-se de si, dos problemas pequenos e dos grandes. Sentiu a sua solidão a preencher-se.
Pôs musica.
De novo encheu o copo, sentiu a boca seca, sentiu sede, o seu corpo pedia por mais, mais alma, mais daquele fôlego alcoólico, mais daquela realidade deturpada.
Dançou até ver o fundo da garrafa, ate não se sentir mais em si, dançou até sentir que voava, não tinha mais os pés no chão, não estava mais ali.
Caiu no sofá… Olhou em frente e foi como se cada olho seu tivesse criado vida independente e visse de um modo diferente o mesmo mundo, que bailava à sua frente em cores gritantes.
Levantou-se e abriu a janela de par em par para a noite, deixou-se ficar ao vento. Apeteceu-lhe gritar para o mar de luzes apressadas que se moviam lá fora, apeteceu-lhe insultar o mundo de janelinhas familiares acesas para o jantar. Queria dizer que estava ali sozinha, mas que isso era opção sua, que era feliz, que sempre fora. Queria gritar o seu orgulho naquela ilusão, queria mostrar o que sentia…
Ficou ali indefinidamente, até que o vento fresco voltou a juntar os seus olhos perdidos pelo mundo.
Ai sentiu uma lágrima rolar pelo seu rosto. Acabara a sua euforia, bateu de novo a solidão, não havia gritado as suas loucuras pela noite.
Não podia.
Hoje ficara sozinha, alguém recusara vir jantar. As paredes de sua casa estavam vazias, agora cheirava apenas a si e a um leve aroma de bar.
Hoje percebera que estava sozinha.
Nem mesmo o vinho a poderia acompanhar.

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