sexta-feira, julho 12, 2013

O treino



O cheiro a pinho pela manhã era familiar. Misturava-se de forma terna com o cheiro que se elevava da terra, evaporado com os primeiros raios de sol que queimavam a camada fresca do orvalho.

O dia estava cinzento, de uma cor outonal em pleno verão, um dia morno beijado por uma brisa fresca que trazia uma certa humidade.

O terreno era plano, uns troços de alcatrão velho entre-cortado pelos estradões poeirentos secos pelos ventos do estio.

Seguia num passo lento, mas confiante. Não tinha nada a provar nesse final de manhã, nem tempos para fazer, nem lugar onde ir. Corria despreocupadamente só porque precisava de acordar, fazer o sangue circular nas veias, sentir-se um pouco viva.

Conhecia bem os caminhos, cada curva, cada árvore. Podia, percorrer aquele espaço de olhos fechados e ainda assim, a cada volta olhava o mundo com um espanto de quem olha para o desconhecido.

Cada casa. A forma estranha como as pessoas vivem os seus espaços, as hortas certinhas e limpas, os quintais caóticos e desordenados. os pequenos mundos de cada um confinados num terreno, aquele terreno que os traduzia.

Ofegava dentro da blusa encharcada, cheia de cheiros. Não pertencia realmente ali. Pensava que estar num sitio onde já se viveu lhe legitimava a presença, mas não, era uma estranha a correr na estrada.

Uma curiosidade, daquelas que obrigam as pessoas a abrandar o passo e a olhar vagarosamente tentado reconhece-la para lá daquelas vestes exóticas.

Murmuravam por vezes "ah é a neta da vizinha, aquela que está para fora", como se estar fora fosse uma condição maliciosa. Distante, algo que dotasse aquela figura a desaparecer no dobrar da esquina duma existência de outra espécie.

Os cães ladravam-lhe por detrás das redes dos quintais, alguns com fúria. Mantinha um ritmo certo, embora lento, o seu corpo ensopado, dores antigas a gritar.

Sentia-se perder em longas ausências. Com a mente a vaguear. Nada acontecia naquele espaço de gente vagarosa, de caminhos de areia, tão próximo do mar mas ainda longe.

Passou  um carro apressado que a obrigou a chegar mais à berma, uma senhora de idade que apitava a cada soleira de porta que via. Viu-a chegar ao fundo da sua rua. Apitou para uma casa perdida no silêncio e inverteu a marcha.

Estugou o passo, que lhes queria? Fez-lhe sinal para a abrandar, e antes que lhe fizesse qualquer pergunta, a senhora disse-lhe pelo vidro aberto, "sou apenas uma vendedora" e partiu sem esperar resposta. Deixou atrás de si um cheiro a peixe passado pelo calor.

"A senhora vende peixe"- pensou. "Num carro simples, com a canastra no banco de trás?"

Caminhava agora a passo lento, tentando regularizar o folego, tentando alcançar a sua casa ao fundo da rua.

A senhora vendia peixe, sem câmara frigorífico, sem bata branca. Essa ideia não a deixava. Vendia peixe nos montes remotos como se se tivesse lembrado naquele mesmo dia dessa forma mágica para sobreviver.

Parou em frente ao seu portão de ferro forjado, abriu-o com um movimento enérgico, enquanto entrava pelo quintal a dentro aquela imagem não a largava, a velha vendedora de cabelo atado num carrapiço ao alto da cabeça, a canastra no banco detrás. 

Os cães agitaram-se puxando as correntes à sua passagem algo ausente. Depois instalou-se um silêncio

"Somos pobres" pensou. "Quando é que isso aconteceu?"





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