sábado, janeiro 25, 2014

A arte de ouvir...

As Pessoas falam. Às vezes de coisas simples, de trivialidades, sobre o tempo. Outras vezes despejam os restos da sua alma magoada nos nossos ouvidos.
Percebi ao longo dos anos que a maior partes das vezes, as Pessoas não querem conversar, querem falar.
Ser ouvidas numa última esperança que a sua ladainha interior tenha um rosto.
Há coisas que só se tornam reais quando tomam a forma de palavras, ditas ... Ouvidas.
Falar é então um acto solitário, um monólogo em que o outro é a plateia. Em vez de palmas incentiva com monossílabos, expressões indignadas, risos de alegria.
Mas é tudo. Podes até tentar introduzir debate, ideias, desconstruir a situação. Mas não há espaço, as Pessoas não querem conversa. Querem ouvir-se. Querem que tu as ouças. E num acto de compaixão ouves, mesmo que seja uma experiência extra- corporal, mesmo que estejas a ouvir um piano imaginário em segundo plano. Ouves.
E às vezes, essa disponibilidade, ouvir, pode salvar-lhes o dia.

¤¤¤

Sinto que são cada vez mais como crianças. Mas crianças com memórias.
As memórias perdidas no vácuo do tempo, repetindo-se num eterno retorno de momentos vividos, quando não se criam novas memórias, não se vivem novas sensações, são corrosivas, transformam-se numa adição.
Nos dias livres de encargos, de hobbies, vivendo um mundo interior incapaz de preencher o propósito de uma vida, tornam-se então crianças que perguntam o porquê de tudo quanto é novo, renegam o desconforto de um mundo desconhecido, esta modernidade criada sem o seu consentimento.
São crianças, dessas que não podemos contrariar, endossadas pela experiência de vida, cheios da verdade que nós só daqui a uns anos poderemos alcançar. Mas crianças, ironia última da existência, regredimos lentamente até à obscuridade de onde viemos.

¤¤¤

"Senta-te e ouve. Porque vês, ali naquele lado do campo ainda não há água, mas costumava haver. Entrava de mansinho pela lezíria acima, o Tejo falava. Na crueldades do inverno, chovia... Um ano choveu sete semanas sem parar. E o Tejo falava com o campo, acariciando-o antes de o tomar.
Vínhamos a pé, lá de longe bem sabes, juntos em rancho pela madrugada. Aqui neste lado, olha a quinta caída a miséria que era. - Mais miseráveis somos agora, olha a quinta caída. - Aqui as mulheres arregaçavam as mangas a apanhar vides, tinhas de trabalhar, num rancho ninguém quer ficar para trás, não ficavas, mesmo que as bolhas te rebentassem nas mãos e os pés negros de frio se isolassem do teu corpo submersos na água presa nos regos das vinhas. Vocês sabem pouco nestes dias, a fome. E os dias sem descanso, de sol a sol, ainda que o sol fosse fraco e o gelo não derretesse nunca debaixo dos nossos pés. Sabem cada vez menos vocês nestes dias."

¤¤¤

É tudo difícil de imaginar no conforto dos tempos, ali prostrados a beira da estrada meio esburacada do caminho do campo. Ao longe o sol sorri à cidade alta, as portas do sol, na planície o vento sopra forte por debaixo de um céu negro e acima da terra ensopada.
Mas aproveita o silêncio, se fechares os olhos e ouvires o correr do rio, se prestares atenção ao silencio ensurdecedor do campo podes vê-los por ali, dedicados as suas tarefas, carregado o fardo pesado.
E sente, nesse silêncio o vibrar do chão ao passo dos cavalos na terra batida. Nesse silêncio dos sítios inertes onde já houve vida. As casas caídas, os quintais abandonados, os que restam enterrados em vida.
Repete-te: "Sabem cada vez menos, vocês por estes dias."

Sem comentários: