quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Na “terra” das primeiras coisas…


É um estado líquido, intemporal esse em que vivemos enquanto estamos suspensos entre uma vida velha e o dia a seguir. Que queremos que seja novo, diferente, melhor.

Provoca dores. Essas devem ser mesmo de crescimento, de desprendimento. O mundo era conhecido, e de repente está cheio de primeiras coisas.

De cheiros que não são familiares e de um mar de sensações, medos e esperanças que todas juntas podem ser avassaladoras.

Encontrar uma casa e olhar para quatro paredes vazias e sentir que podemos viver ali não é fácil. Não é barato, não é simples. A realidade mais uma vez  é mais simples imaginada do que vivida. Imaginamos colocar a chave numa porta e abrir um admirável mundo novo de sofás e almofadas, tudo no sítio. O cheiro a verniz e a baunilha e estás em casa.

Mas depois percebes que tens de esperar para ter essa chave, que tens papeis para assinar, luz para ligar...que tens de te preocupar com pratos e chávenas. Que tens de comprar uma cortina para a banheira e que vais passar meses a achar falta. Disto e daquilo,  a vivência será um mar de falta de coisas.

Já montei uma casa… e depois montei outra, a um passo de cada vez. A cortinados desencontrados das almofadas, a cada coisa a vir ao sabor do quotidiano. A ver estantes a vestirem-se de vida, a deixar um rasto espalhado de vivência em peças desenquadradas e papeis esquecidos. Um processo no qual fica sempre um pouco de nós, mesmo que não seja o nosso reflexo, mas apenas o reflexo das nossas possibilidades. Montar casa é criar refúgio de vida. Mas é um processo, cansa-nos até à exaustão.

Deixar a casa que se montou para trás gera um sentimento de perda estranho. Não devemos ser apegados a coisas, mas não são as coisas em si. Não é apego aos cortinados roxos que foram mesmo os que eu queria ou à cor da tinta da parede que eu ousei escolher. Será talvez à excitação que foi escolher a cor, ao trabalho árduo que foi pintar cada metro daquele sítio, à emoção de ver os cortinados pendurados, o jogo final. De tudo o que fui eu ali. De tudo o que já havia sido noutra casa.

De todas as casas da minha vida.

Deve ser Karma. Não ter casa, ter tantas casas, andar tanto entre elas que não sou realmente de nenhuma.

Aos 30 ainda me falta achar O sítio, que é a minha CASA.
Não sei se será aqui... ainda lhe falta a vista de mar.

***
Não respirava o ar da noite neste sitio há mais de 12 anos. Sempre teve um sabor adocicado. O frio das noites da minha adolescência era melhor que o frio dos dias, e eu podia vaguear pelas travessas como um fantasma deslizando, um exercício de perícia.

A terra, era o meu território, um mapa claro, hoje é uma perfeita estranha. Nunca lhe senti saudades, de todas as minhas casas esta será a mais mal amada, de todos os meus anos esses os que pertencem a uma vida que não é minha.

Sou estrangeira na minha terra. E dou por mim a fitar rostos, a achar que os conheço, a lembrar histórias e situações. Vejo rostos que me olham sem determinação. De todos os sítios onde eu poderia vir a estar 12 anos depois, a correr no escuro da noite na ciclovia não era um deles. "Não... aquela não é a Angie, estranho ia jurar..."

Em 12 anos todos os vestígios de mim desapareceram. Dos nomes das pessoas com quem me dava, os sítios onde ia que estão fechados, as ruas requalificadas. Como se não existisse mais prova arqueológica da minha história. Tornou-se numa civilização sem documentos. Sem ruínas, sem nada.


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