domingo, março 30, 2014

A estrada perdida...

Saiu para o ar da noite meio entorpecida agora que a adrenalina da festa se estava a esgotar. Atrás si fechava-se o mundo numa noite serrada Iluminada por estrelas baças.
As luzes iam-se esgotando e com elas o burburinho de pessoas que abandonavam o local, umas cambaleantes, outras efusivamente alcoolizadas, outras ainda silenciadas pelas exaustão.
O frio da noite era-lhe mais familiar do que o frio do dia, tremeu-lhe o corpo por debaixo da fina camisa de seda, mas sentiu-se libertar em pequenos espasmos, como se o frio lhe trouxesse de volta a consciência. Havia ainda aquele cheiro de pinhal, de pinho molhado, de terra fresca coberta pelo orvalho de uma manhã que não tardaria a chegar. Rebeca caminhava descalça carregando uns sapatos torturadores nas mãos, tateada o chão frio com cautela e os seus pés estavam já dormentes quanto alcançou o carro.
Lutou com a pequena mala para encontrar a chave, o frio continuava a entrar-lhe pelo corpo e havia pisado algo que lhe magoou o pé direito, enquanto procurava manter o equilíbrio entre o cansaço e o torpor alcoolizado.
Sentia-se como alguém que vinha da festa, um travo amargo na boca, a vista pesada e a cabeça cheia de emoções que ainda não tinha tido tempo de absorver, de espremer e retirar o sumo. Tantas caras, tantas conversas cruzadas, o êxtase da dança, a música a correr nas veias e um coração a bater ritmado.
A mistura de sabores, de comida, de bebida, de perfumes e tabacos. As cores e os brilhos. As festas daquele lado afastado da região eram sempre memoráveis. Pecavam pela viagem longa, pela estrada deserta que atravessa o pinhal, denso e obscuro. Um espaço quase encantado e ao mesmo tempo tenebroso pela escuridão.
Mas Rebeca colocou as mãos firmes no volante. Ligou o Radio, I´m derenged do Bowie começou a tocar, pareceu-lhe providencial, até casa seria uma espécie de estrada perdida, minutos longos de encantamento Lynchiano.

***

Rebeca sabia que conduzir não trazia ao de cima o melhor dela. O seu temperamento pacifico alterava-se quando punha as mãos num volante. Impacientava facilmente com outros condutores e era dada a pequenas provocações na estrada. Era ainda agressiva na forma como manejava o carro, gostava de velocidade, gostava de sentir a maquina a vergar-se pela perícia das suas mãos.
Gostava de fazer curvas perigosamente e de jogar a sorte usando pés pesados no acelerador.
A noite continuava fresca, Rebeca levava uma pequena fresta do vidro aberta para respirar, pisava o acelerador com convicção, “derenged” ecoava a um ritmo frenético a a estrada afunilava entre riscas brancas perante a sua percepção meio toldada.
Mas o ritmo do som cadenciava um coração aflito que lhe bombeava o sangue nas veias, o sangue de um corpo cansado e sujo, intoxicado, fazia crescer em si um frenesim interior.

“I'm deranged
Deranged my love
I'm deranged down down down
So cruise me babe cruise me baby…”

Ecoava, pensava se não estava mesmo demente. Rebeca achava que se alguém ficasse demente na estrada seria esta a musica que o e enquadrava.
E o que era demente naquele fim de noite escuro e fresco? A contínua vontade de acelerar e começar a fazer curvas apertadas de sentir o carro a derrapar na gravilha para lá do alcatrão quando media mal o caminho e saída da estrada.

“And the rain sets in
It's the angel-man
I'm deranged”

Ou seria demente puxar o travão de mão, ali só porque sim, Rebeca pensava nisso enquanto acaraciava o manipulo do travão, como se fosse uma arma letal. Letal e atraente, quase irristivel. Por vezes sentia essa curiosidade animal, “E se eu puxasse o travão de mão, que aconteceria?” O carro rodaria sob si na estrada, ela perderia o controle da maquina que derraparia até embater numa dessas arvores gigantescas, ou capotaria por uma dessas bermas ladeadas de barrancos, o seu corpo quebraria das mais variadas formas entre metal retorcido e frio ou ardente do fogo, rasgando-lhe a carne. E o sangue continuaria a ser bombeado, ainda quente ao ritmo de Bowie, mas para fora de si como que drenando-a de vida. Séria isso, seria assim? Rebeca continuava com a mão pousada no travão, afagando-o como se fosse a alavanca a puxar em caso de emergência. A estrada continuava a estreitar-se entre as linhas brancas, curvando-se perante um percursos acidentado pelo capricho do pinhal.
Carregava como mais convicção no acelerador, pisava o travão ao entrar na curva, doí-lhe o pé magoado e descalço, mas era indiferente a adrenalina crescia-lhe encadeada pelas luzes que se aproximavam vindas de frente, na imensidão do pinhal do silêncio daquela noite fresca e depois de quilómetros de demente solidão tinha companhia na estrada.

“The clutch of life and the fist of love
Over your head
Big deal Salaam
Be real deranged Salaam
Before we reel
I'm deranged”

"Derenged" continuava a ecoar, Rebeca distribuía a mão direita inclemente entre as mudanças que metia com convicção e o travão. E acelerava, abriu um pouco mais a janela e sentiu o ar a uivar no topo das árvores, da frente não baixaram os máximos, a estrada entre as duas linhas deixou de afunilar no meio da velocidade para se transformar num grande clarão.
Rebeca deixou de saber de si, e soltando a caixa de mudanças, puxou o pé ferido para o travão pé que lhe escorregou no sangue quente que não reparou lhe corrida da ferida.


I'm deranged… fechava em acordes frenéticos, depois um embate ensurdecedor, depois o silêncio cortado por um coração que batia…bombeando sangue quente para fora do corpo, drenando-lhe a consciência... Rebeca lembra ainda do travão de mão...dessa curiosidade insatisfeita antes de se ausentar de si.

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