quinta-feira, março 06, 2014

Cadernos da Cidade Nova I


Mudei-me para aqui,  bem podia ter sido para Marte, que eu à Lua ainda conheço as fases. Deste sítio nada. Só o lugar que ocupa no mapa e o semblante visto ao longe, no cimo da colina. 

Este sitio é como aquela pessoa com quem toda a vida nos cruzamos na rua e nunca soubemos quem é. Dissemos-lhe bom dia, boa tarde, um sorriso num dia de verão, mais nada.

Hoje subi a encosta a correr, entrei na artéria principal e continuei pelo planalto, pelas ruas estreitas, pelas vielas, pelo reino do gótico. Não conheces as ruas antes de lhes ter pisado a calçada, antes de sentires a mistura do ar, do cheiro do jantar que se desprende das casas ou do pão que torra no café. Esse cheiro da vivência que envolve o das árvores, os escapes e a neblina que sobe do rio em fim de tarde.

Não conheces os sítios antes de os sentires a pulsar, a vibrar debaixo dos pés antes de distinguires os sons, e veres as esquinas, os sítios onde não foste mas podes ir.

Correr. Aqui, ou no outro lado do Atlântico continua a ser a maneira mais fiel de conhecer uma cidade.

***

Estou a ressacar de pessoas. Ainda que a rua esteja cheia de Humanidade, eu preciso de pessoas, das minhas. De pessoas de quem eu não posso duvidar, de expressões conhecidas, de gargalhadas altas e sinceras, de ter espaço e de ser eu. Eu entre os meus pares, entre tantos anos de afinidades, de cumplicidade. Estou a ressacar das minhas pessoas.

Aqui em Marte são todos desconhecidos. Hoje vi esplanadas, achei-as interessantes, talvez me vá lá sentar. Ai pensei nessa coisa complexa que é conhecer pessoas, da espontaneidade. Antigamente isso era fácil, na escola ou  nas noites de copos, o amigo que apresenta o outro amigo, um mundo de tempo e possibilidades.

E agora, como se conhecem pessoas? Como se descobre afinidades? Agora que a paciência é pouca, o tempo ainda menos e a nossa exigência maior. Crescemos e não temos mais tempo para o erro, não temos mais espaço para a desilusão, para escrutinar rostos ou desvendar personalidades. Pisar terrenos movediços, pessoas. As pessoas são difíceis. E como descobrir pessoas no meio de tanta Humanidade?

*** 

Depois conhecemos pessoas que têm muros altos, são autênticas fortalezas. Um império solene, vivem na mais perfeita solidão.

Que não nos permitem entrar, mas que nos convidam a espreitar cá de fora. Que embora nos mostrem a riqueza do seu ser, nos emprestem por momentos a chave e nos deixem permanecer por instantes, no fim do dia sempre vão encerrar as suas portas.

São normalmente encantadores. Falam muito, comunicam pouco. Prendem-nos por momentos nessa áurea misteriosa. E nós por instantes achamos que vamos conseguir entrar, estamos já apaixonados por esse admirável mundo interior…presos. Porque são intensas, e saborosas tornam-nos insaciáveis...

Mas são fortalezas. Estão perpétuamente encerradas.
Só nos resta a certeza que nunca se darão a nós, devemos parar antes que se tornem corrosivas.

Em tempos achei que queria ser assim, auto-suficiente e  inalcançável.

Não sei mais se quero. Conhecer alguém e permitir que nos conheçam é um processo maravilhoso de criação de laços.

Orgulhosamente sós…é com viver “La grade Belleza”, freneticamente no agora. 
Uma vida sem estória no meio de tantas histórias.



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