domingo, março 02, 2014

Ensaio sobre a memória I


"Fitava os pés há já algum tempo, incapaz de encarar o absurdo da sua situação. Estava sentada à beira de uma cama desconhecida, num quarto vazio, com alguém estranho. Sentia no ar um cheiro adocicado, a tabaco fumado, uma presença latente e podia ouvir todo um mundo a girar la fora, em sons familiares. 
Tentava em vão avaliar a sua situação, o lapso de tempo que lhe faltava. Que estava a fazer ali? Passou as mãos diligentemente pelo corpo escrutinando-se, nada lhe faltava, nem um rasgo na seda da pele, e no entanto no seu interior sentia-se profundamente dilacerada.

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Não entendia o fascínio do mundo por esse tipo de casualidades, tinha de se conformar. Agora que caminhava pelo frio da manhã, de cara mal lavada e cabelo desgrenhado, simplesmente não compreendia. Nesse lapso de tempo que lhe faltava alguém havia satisfeito o seu desejo, ela a sua curiosidade e pela manhã, fria de um inverno penoso, os corpos quentes e desconhecidos, que por instantes estiveram juntos cumprindo um ritual de instinto básico, voltaram a ser só corpos quentes e desconhecidos. Se se dedicasse ao silêncio tempo suficiente, podia simplesmente não ter acontecido. Nem isso, nem essa linha aleatória de tempo que junta vontades. O desejo e a curiosidade... 

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Passados tantos anos ainda poderia destingui-lo no meio de uma multidão. Apaixonara-se primeiro pelo seu cheiro, essa mistura única de pele, de alma, de perfume e sabonete de banho. Essa mistura pessoal de vivências, de fumo de tabaco e do ar da cidade. Uma essência mais forte por detrás das orelhas, mais intensa na parte de dentro do pulso, o cheiro da intimidade. 
E no entanto a imagem dele esbatia-se já na sua mente, como uma fotografia a sumir-se amarelecida pelo tempo. Tinha tido uma passagem tão breve na sua vida, tinha sido como um sonho numa noite de Verão. 
Num momento estava tão junto a si, tão próximo, tão real e num outro tinha-se desvanecido, sem deixar marcas ou testemunhos, sem arqueologia possível, sem documentação. Uma inexistência. 
Sobra-lhe o cheiro de lembrança, poderia reconhece-lo, na brisa pela manhã, no tabaco a vaguear pelas ruas em determinadas temperaturas, em dias temperados pela humidade das ervas, ou no pico seco do Verão. 

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Gostava de viajar assim, de comboio, sentada à janela. Sentia sempre que a sua mente se libertava com os solavancos ritmados das carruagens. Se soltava para lá dos montes e vales, de verde e azul a perder de vista e todos aqueles sitios, apeadeiros e estações perdidas, nostálgicas, eram um vácuo de tempo.
Os anos haviam sido justos consigo, apesar das mãos engelhadas, do cabelo a perder cor e de uma vista cansada, movia-se ainda com agilidade e a sua mente estava sã. Dava-se por isso ao luxo de viajar sem rumo, de visitas a termas, a retiros em locais silenciosos, onde pudesse estar só, longe do mundo que a solicitava a todo o momento, deixar-se estar e recordar. 

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Esporadicamente, lembra-se do seu cheiro. Tantos anos passados e ainda se voltava à passagem de um estranho que lhe parecia familiar. Às vezes um trejeito no sorriso, lembrava-se de pequenos pormenores, havia já esquecido o todo, e embora não lhe enchesse de angústia, tinha já compreendido que não o veria mais, que não poderia reviver aquela história, no entanto nos últimos anos, com o aproximar do anoitecer da vida, sentia-se mais próxima daquela memória. Como se ter vivido aquele turbilhão de sentimentos legitimasse a sua existência.  Era como se só por aquele breve momento no tempo ter acontecido, todos os outros anos, todas as outras horas se tornassem válidas. 

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Estranhamente na altura não tinha sentido aquele episódio assim, nunca achara que aquele momento a iria acompanhar pela vida, uma decisão impensada, um impulso nada seu. Como se por um momento se tivesse simplesmente permitido ser um ser leve, desprovido de consciência, de crenças e de toda a preocupação. Acedeu a um convite, e depois a outro, permitiu-se à situação. 
Lembra-se de um nervosismo juvenil que a invadia, de uma certa vergonha, de não saber o que fazer com as mãos. E depois num momento estavam ali, permitiu-se a ser simplesmente feliz. Lembra-se dessa sensação de pura felicidade, da luz desse dia. 
Lembra-se da confusão dentro de si depois, como uma ressaca que a atormentou por dias, e depois o silêncio interior, o esbatimento das lembranças. A negação. 

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Estava absorta nesse mar, o comboio continuava ritmado até que parou num pequeno apeadeiro. Uma voz rufenha anunciou uma pausa na viagem. A carruagem meio vazia agitou-se com saidas e entradas, e ela podia ver da janela os azuleijos do lugar, as mães de preto a desperdir-se, outras a abrir o coração aos regressos. 
Então sem aviso o seu coração parou de bater...por segundos ficou suspenso para voltar a si num respirar fundo e aflito. E quando conseguiu soltar-se dessa sensação de que estava paralizada voltou-se, desaparecia na porta da carruagem um vulto, de fato preto. 
Atrás de si deixara um rasto de cheiro familiar.

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